LIVRO: “O Hóspede de Job”,
de José Cardoso Pires
Ed. Herdeiros de José Cardoso Pires e Publicações Dom Quixote, 1963 (Ed. Editora Planeta DeAgostini para a presente edição, 2001)
“Já o velho que o acompanha não se queixa do mesmo. É tão seco, tão áspero, que não tem um pingo de gordura que o sol derreta. Suar não é com ele, cansaço ainda menos. Vem um tudo-nada dobrado? Embora. O que importa é o modo como traz a caçadeira: aperrada, sempre à mão. Mas não é tudo: à sombra do chapéu saltam uns olhinhos de conta que furam por baixo de toda a folha. Quando menos se espera, desencanta buracos de mocho, revolve camas de coelhos, ninhos de perdigoto, mil coisas que lhe lembrem comida. E nesta ansiedade nem os cágados se salvam. Agora mesmo leva ele um na algibeira, enrolado num lenço cheio de nós.”
Dedicado à memória de António Nuno Pires Neves, irmão de José Cardoso Pires, morto num acidente de aviação em cumprimento do serviço militar quando o Harvard T6 em que treinava se incendiou em pleno voo acabando por cair e explodir, “O Hóspede de Job” tem com ele a força das verdades que importa que sejam ditas. Trata-se de um livro que arrasta consigo uma urgência, a da denúncia das relações de poderio entre aqueles que tudo possuem e os que nada têm, sejam eles patrões e servos, governantes e governados, países ricos e países pobres. Assimetrias por demais evidentes num Portugal com os cofres exauridos pela Guerra Colonial e vergado ao poderio norte-americano no seio da Aliança Atlântica, a ditadura salazarista alinhada com a meia dúzia de “figurões” que detêm o monopólio económico, o pobre e explorado a desesperar por trabalho e por pão.
Assumindo o combate político por intermédio de uma escrita vincadamente realista, ao encontro dos fracos e desprotegidos e daqueles que os oprimem e humilham, José Cardoso Pires lega-nos, com este “O Hóspede de Job”, o retrato contundente de um Portugal provinciano, profundamente atrasado e retrógrado, marcado pela soberba de uns quantos face à pobreza dos demais. Nos grandes latifúndios alentejanos enxameados de “ratinhos” a ceifar de sol a sol por uma côdea, nas rondas da guarda que do alto dos seus cavalos impõem a sua prepotência, nos pides que perseguem, torturam e matam, nas crianças e nos velhos que, alheios ao perigo, recolhem o metal nas carreiras de tiro ou no cágado que segue na algibeira e que, à falta de melhor, será cozido e comido, é todo um breviário da submissão e da fome aquele que se oferece ao leitor.
Para além deste desassombro e desta coragem de confrontar o Estado Novo com os seus dislates e contradições, “O Hóspede de Job” oferece ao leitor uma espécie de jogo, ao encontro de elementos recorrentes na obra já publicada, tanto figurativos como de estilo. João Portela e o tio Aníbal parecem duas personagens saídas desse extraordinário conto inaugural que é “Os Caminheiros”. Podemos ver estes ambientes de conspiração e revolta em “O Render dos Heróis”. Corre-se atrás de um perdigoto em “O Anjo Ancorado”, como se corre aqui atrás de um coelho. E depois há toda uma série de recursos estilísticos, com particular ênfase no discurso directo e na linguagem terra-a-terra que nos são familiares. Uma vez mais, entre o povo oprimido, não há heróis. É assim “O Hóspede de Job”, um enorme livro, de um enorme escritor, testemunho de tempos e lugares que marcaram a nossa História. E continuam a marcar.
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