LIVRO: “O Anjo Ancorado”,
de José Cardoso Pires
Ed. Herdeiros de José Cardoso Pires e Publicações Dom Quixote, 1958 (Ed. Editora Planeta DeAgostini para a presente edição, 2001)
“O carro. Em dinheiro aqueles dez ou doze casebres não dariam para o Talbot Lago, dois litros e meio, que estava ali adiante, no deserto. Nem que se juntasse toda a tralha de redes podres, covos de lagosta e mais uma ou outra embarcação de fundo chato. Nem com isso, nem mesmo com isso.”
Um sopro de desesperança e abandono atravessa as páginas de “O Anjo Ancorado”. Desenhado ao correr de uma tarde na pequena aldeia de S. Romão – pequeno povoado das cercanias de Peniche onde vive um punhado de almas em casas “como gaiolas de adobe e falheiro, empoleiradas sobre o oceano” –, o livro conta a chegada de um homem e de uma mulher no seu Talbot-Lago, ele disposto a mergulhar nas águas profundas para uma par de horas de caça submarina, ela apenas para o acompanhar e entregar-se a uma longa espera. Nem mistério, nem romance, nem entusiasmo, nem ilusões. Nada. Apenas dois corpos voltados sobre si mesmos e meia dúzia de frases esparsas num “deserto”, uma falésia pedregosa e nua batida pelo vento, o clamor das ondas e os gritos das gaivotas em fundo.
Com o fim da II Guerra Mundial, acreditou-se que os ventos de mudança iriam chegar a Portugal, trazendo com eles a liberdade e a democracia. Personificada no MUD - Movimento de Unidade Democrática, essa corrente de entusiasmo começou a esfriar na Primavera de 1947, com a prisão de inúmeros activistas do MUD Juvenil e, em Janeiro do ano seguinte, com a ilegalização do próprio Movimento. A prisão de Cunhal em 1956 e as eleições fraudulentas de 1958, nas quais Humberto Delgado assumiu a oposição ao Estado Novo, foram outros dois momentos-chave na afirmação de Salazar como um temível ditador, cerceando por inteiro quaisquer aspirações libertárias. Será aqui, porventura, que encontraremos as bases de um ambiente de marcado desencanto e apatia que envolve toda a obra e contamina o próprio leitor.
Na linha dos seus primeiros trabalhos, “O Anjo Ancorado” é um exemplo acabado da genialidade de José Cardoso Pires enquanto escritor. Os ambientes realistas e o cariz vincadamente político do livro vêm na sequência dos seus primeiros trabalhos e traçam, por si só, um retrato detalhado de um Portugal amordaçado pela ditadura, fechado ao exterior e orgulhosamente só. João e Guida, as duas personagens principais do livro, não têm ilusões quanto ao seu futuro. Braços caídos, recordando momentos passados que tanto prometeram, eles são o espelho dessa geração das oportunidades perdidas (o cúmulo da inércia encontramo-lo em João quando, no abismo do mar, caça de forma inglória um esplêndido mero que se encontrava a dormir no abrigo das rochas). Vista no seu conjunto, a obra de Cardoso Pires tem aqui um dos seus mais marcantes exemplares. A ler, urgentemente.
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