LIVRO: “Dinossauro Excelentíssimo”,
de José Cardoso Pires
Ed. Herdeiros de José Cardoso Pires e Publicações Dom Quixote, 1972
(Ed. Editora Planeta DeAgostini para a presente edição, 2001)
“A voz nascia na tribuna, vinha do alto, ou ia para o alto, lançada pelas bocas de um exército de altifalantes apontados às nuvens do inconcebível; era uma voz cercadora, que estava atrás e à frente ao mesmo tempo, e por cima também; voz maior, VOZ, emoldurada em palmas. Alinhados em esquadrões, sol e estandartes, os peregrinos esticavam o pescoço a procurar seguir-lhe os rastro pelos caprichos das alturas. Percebiam e não percebiam, pouca coisa, quase nada, dados os seus fracos conhecimentos do dialecto dê-erre, mas não era motivo para se afligirem: iriam compreender quando o padre e a professora Minha-Senhora os reunissem lá na aldeia para fazerem o comentário próprio. Aí seria o Discurso em tradução livre, mas por enquanto tinham o dos altifalantes, que era todo ao vivo e que os cobria com pensamentos de cometa.”
Aquando da publicação de “Dinossauro Excelentíssimo”, talvez se tenha passado com José Cardoso Pires e Rogério de Freitas, o seu editor pare este livro, o mesmo que sucedeu a Fernando Tordo e José Carlos Ary dos Santos quando viram a sua “Tourada” pegar o mundo “pelos cornos da desgraça” e resistir ao travão da censura, acabando a representar Portugal no Festival Eurovisão da Canção em 1973. Terão ficado boquiabertos. “Para surpresa de todos, editores e autores incluídos, a censura não viu o dinossauro no meio da sala ou, se viu, não lhe prestou muita atenção”, conforme diz Bruno Vieira Amaral nesse notável “Integrado Marginal”, a biografia de José Cardoso Pires [Contraponto Editores, Junho de 2021]. Neste caso, a colagem de “Sua Alteza, o camponês mestre doutor” à figura de Oliveira Salazar é tão evidente que qualquer explicação para tamanha “desatenção” pecará por vaga, inconsistente ou descabida.
“Dinossauro Excelentíssimo” começou por ser uma ideia de prenda de aniversário para a filha mais nova do escritor, essa mesma “Ritinha” com quem dialoga a espaços no livro. Rita Cardoso Pires, porém, teria de aguardar até ao Natal para ter a sua prenda. Estávamos em 1969 e “Dinossauro Excelentíssimo” só seria publicado quase três anos depois. Nesse espaço de tempo, à semelhança de tantos dos seus livros anteriores (e dos que se lhe seguiram), o escritor reformulou este seu “divertissement” e apelidou-o de fábula. Fábula sim, mas profundamente irónica, nada inocente, fazendo esvoaçar o seu perfume através de uma narração livre e despida de preconceitos, os elementos imaginários como caricaturas impondo a sua força e a sua verdade. Das origens à formação na “cidade dos Doutores”, da tomada de posse do Reino dos Mexilhões à mentira como forma de governar e ao acidente que viria a ditar a sua morte, as sessões ficcionadas do Conselho de Ministros de permeio, a biografia do ditador está lá todinha, com a frieza e a acidez que caracterizam Cardoso Pires.
Provocador como nenhum outro, certeiro ao alvo e carregado de veneno, como essas flechas disparadas pelas zarabatanas dos índios Yanoama ou Kachúyana, assim é “Dinossauro Excelentíssimo”. Um livro que é, todo ele, um tratado sócio-político, que dá a ver, por palavras muito suas, os comos e os porquês de 48 anos de opressão e ditadura. Por entre chaves que abrem as chaves das chaves, estátuas que falam e câmaras de torturar palavras, ao longo do livro encontramos a máquina repressiva do Estado afinada pelo trinómio “Deus - Pátria - Autoridade”, assente numa complexa teia de interesses e na mais refinada mentira, enterrada em processos burocráticos gigantescos e, à frente dela, um imperador excelentíssimo, mestre de ordens e decretos e senhor de discursos impantes, até se ver só, completamente só, orgulhosamente só. O resto são mexilhões ferrados na rocha, conselheiros perpétuos sem tom nem som e imperadores de bronze. Mas quanto a isto, “bico calado”. Não vá o diabo tecê-las!
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