LIVRO: “O Delfim”,
de José Cardoso Pires
Ed. Herdeiros de José Cardoso Pires e Publicações Dom Quixote, 1968 (Ed. Editora Planeta DeAgostini para a presente edição, 2001)
“Temos, pois, o Autor instalado na janela duma pensão de caçadores. Sente vida por baixo e à volta dele, sim, pode senti-la, mas, por enquanto, fixa-se unicamente, e com intenção, no tal sopro de nuvens que é a lagoa. Não a vê dali, bem o sabe, porque fica no vale, para lá dos montes, secreta e indiferente. No entanto, aprendeu a assinalá-la por aquele halo derramado à flor das árvores, e diz: lá está ela, a respirar. Depois, se quisesse escrever, passaria apenas o dedo na capa encarquilhada do livro que o acompanha (ou numa tábua de relíquia, ou numa pedra) e sulcaria o pó com esta palavra: Delfim.”
Com a publicação de “O Anjo Ancorado” e, cinco anos volvidos, de “O Hóspede de Job”, José Cardoso Pires provava possuir todos os atributos de um genial romancista, que não apenas o contista sedutor e requintado dos seus trabalhos inaugurais. A exigência do romance, o voo mais largo, um maior fôlego, encontrou nele um escritor à altura, capaz de gerar histórias a partir umas das outras e criar no leitor aquele tipo de interesse que o faz pegar num livro e lê-lo sofregamente do princípio ao fim. Os romances enunciados são disso um belíssimo exemplo, ao mesmo tempo que herdam o trabalho de filigrana que os seus contos encerram, os ambientes com idênticas texturas, as figuras com a mesma ilusão, a mesma inquietação, as mesmas sombras. Eis senão quando chega a vez de “O Delfim”, um livro que se distancia dos anteriores pela aspereza das suas falas, pelo uivar dolorido dos cães, pelo sangue mais vermelho e mais espesso, pela raiva mais raiva ainda.
É um livro admirável este “O Delfim”, narrado por um escritor – Cardoso Pires, “lui même” – que regressa à Gafeira um ano depois para viver a euforia da abertura da caça e que percebe o quanto tudo se modificou em tão curto espaço de tempo: os jogos de sedução, as relações de poder, a atitude das pessoas, a própria fisionomia da aldeia. Tudo por causa de duas mortes que se abatem sobre a casa dos Palma Bastos, senhores todo-poderosos do lugar e seus termos, dando azo a dúvidas e “certezas” as mais variadas e díspares na base do “cada cabeça sua sentença”. Desses crimes, pela voz do “escritor-detective”, nos fala “O Delfim”, dando a ver um Império a desabar com estrondo porquanto assente nos frágeis alicerces de uma estrutura social retrógrada, com os seus insuportáveis tiques machistas, o marialvismo mais refinado e os estigmas de um racismo cultivado há séculos.
Mas se “O Delfim” tem o toque de mistério e de fascínio que torna a sua leitura tão irresistível, tudo isso é devido, sobretudo, à qualidade da sua escrita, à forma de contar de José Cardoso Pires da qual se destaca uma superior inteligência e enorme destreza em lançar mão dos mais variados recursos estilísticos, colocando-os ao serviço da obra. Falando a várias vozes, a vários tempos, recorrendo às monografias, aos cadernos de apontamentos ou à sua própria memória, reproduzindo as conversas dos outros ou o seu pensar em voz alta, Cardoso Pires oferece um conjunto de camadas narrativas que se interpenetram e complementam, adensando a trama e deixando o leitor cada vez mais preso ao livro. Personagens, tempos e lugares de um enredo labiríntico são aqui “espremidos até ao tutano”, a essência de cada um dispensada gota a gota, exigindo do leitor um trabalho de desconstrução com tanto de exaustivo como de fascinante. Um romance que não se esgota em si mesmo e que, passados mais de 50 anos sobre a data da sua publicação, mantém vivos os traços de modernidade e uma espantosa actualidade.
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