LIVRO: “O Burro-em-Pé”,
de José Cardoso Pires
Ed. Herdeiros de José Cardoso Pires e Publicações Dom Quixote, 1979
(Ed. Editora Planeta DeAgostini para a presente edição, 2001)
“ - Jogo, quê? Mas alguma vez foi o jogo, o burro-em-pé?
- Se serve para apostar é jogo.
- Mas quais apostar, quais joão! Com que ver, com que moral é que você ia apostar num jogo de crianças?
- Aí é que está.
- Além de que nunca foi jogo, caraças. Burro-em-pé nunca foi jogo.
- Nem burro. Burro-em-pé é palhaço.
- Bem visto. (…)”
É com esta “conversa a várias vozes numa casa de pasto do Poço do Bispo”, que José Cardoso Pires começa a erguer este seu “O Burro-em-Pé”, conjunto de cinco contos escritos entre Janeiro de 1960 e Novembro de 1978. O diálogo, à guisa de apresentação, realça um dos pressupostos da colectânea, aproximando-a de “Jogos de Azar” pela sua forte componente social e política, mas afastando-se dele na abordagem, o sonho a comandar a vida, como se tudo não passasse de uma brincadeira de crianças que nem é jogo nem é nada. Destinado a colmatar uma prolongada ausência do mercado (“O Delfim”, último romance de José Cardoso Pires, datava já de 1968), “O Burro-em-Pé” chegou às livrarias nos inícios de 1979 numa edição luxuosa, com ilustrações de Júlio Pomar, sendo composto por três contos anteriormente publicados na imprensa (“Os Reis-Mandados”, “O Conto dos Chineses” e “Nós, Aqui por Entre o Fumo”), uma “noveleta” inédita (“Celeste & Làlinha: Por Cima de Toda a Folha”) e uma versão revista de “Dinossauro Excelentíssimo”, fábula publicada seis anos anos, “uma ideia infeliz” no meio dos outros contos, conforme referiu o crítico Alexandre Pinheiro Torres, que escreveu o prefácio à edição alemã.
Lê-se “O Burro-em-Pé” como uma espécie de continuação de “Jogos de Azar”, ainda que apenas no que aos três primeiros contos diga respeito. Estão lá os mesmos ambientes, as mesmas sombras, os cheiros da comida aquecida, o suor e as lágrimas de quem vive um amargo presente sem descortinar futuros que não seja em sonhos. No pequeno “João Janico, Perninhas de Lebre, Orelhas em Bico”, os pés em labareda dentro das suas botifarras enormes (“de bom cabedal, de macia capa de vaca, solas de pneu de automóvel e valentes costuras”), a oferecer-se para “voltas e recados” aos senhores ricos dos “estoris”, há todo um futuro carregado de promessas e ilusões que, sabemo-lo de antemão, não passarão disso mesmo. O mesmo se passa com “um certo tipógrafo” que tem a mania dos números - “2-X-2; 1-1-1; 1-2-X” - e que vai fazendo contas ao carro que comprará no dia em que a sorte cair para o seu lado. Ou do camponês que, após o encontro com dois chineses, “adormeceu a sonhar com passarinhos fritos, escorrendo sobre o pão”. Neles, o leitor reencontra a escrita directa e ácida de José Cardoso Pires nesse olhar desencantado e sem esperança sobre o Portugal salazarento e fascista.
Os restantes dois contos são uma história à parte. “Dinossauro Excelentíssimo” é aqui enxertado fora do contexto e sobre ele me debruçarei em particular, com uma recensão à primeira versão publicada em 1972. Finalmente, “Celeste & Làlinha: Por Cima de Toda a Folha” é um dos mais comoventes e bem escritos contos que me foram dados ler até hoje. Inédito destinado a completar “O Burro-em-Pé”, o conto é escrito no pós-25 de Abril e parte ao encontro desses pobres que nunca deixaram de o ser, retornados das antigas colónias portuguesas e abrigados em colmeias precárias de onde se avista lá ao longe, “num esplendor de luz e de nuvens sangrentas”, a cidade capital dos impérios. É preciosa a forma como, pelo olhar de uma criança, José Cardoso Pires nos faz um retrato desses tempos de tamanha raiva e amargura no “bater a asa, rumo ao velho ninho, Portugal”. O amor que une Celeste à sua boneca, “uma negrinha só ternura e ainda por cima indefesa porque tinha um braço estropiado” tem na desonestidade intelectual e na imoralidade do pensamento e comportamentos racistas e xenófobos um contraponto brutal. Quase meio século depois, este é um conto que se mantém actual e que diz muito do que fomos e somos.
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