LIVRO: “Jogos de Azar”,
de José Cardoso Pires
Ed. Herdeiros de José Cardoso Pires e Publicações Dom Quixote, 1963
(Ed. Editora Planeta DeAgostini para a presente edição, 2001)
“Todos tinham agora os olhos levantados para o tecto, e assim eram uma fila de caras atiradas para o ar. Mas o besouro acachapara-se na lâmpada, em silêncio, derramando a sua sombra parda pelo compartimento. Assim, não passava de uma asa enorme a carregar as faces dos soldados, grande e quieta como se estivesse espetada nas baionetas armadas.”
Por breves instantes regresso a “Integrado Marginal” e ao seu último parágrafo onde se pode ler: “Espero que esta biografia honre a memória e a obra de José Cardoso Pires e que traga novos leitores para os seus livros.” Este será, seguramente, um dos grandes desígnios desta extraordinária biografia escrita por Bruno Vieira Amaral. Embrenhados na sua leitura, descobrindo as linhas com que se cose uma vida e uma obra, desde as primeiras páginas que sentimos essa vontade de tornar a Cardoso Pires, vontade essa que vai aumentando à medida que avançamos na leitura até se transformar numa urgência. O que li de José Cardoso Pires tem já uns largos anos em cima e importava regressar a ele. E assim, fechada a biografia sobre a sua última página, eis-me face a face com os volumes da colecção que a Planeta DeAgostini publicou em 2001, preparado para “atacar” este manancial de leitura. Para começar, a escolha pareceu-me óbvia. “Os Caminheiros e outros contos”, edição de autor publicada no segundo semestre de 1949, fora a primeira obra de Cardoso Pires e seria pelos “caminheiros” que iria começar.
Foi em 1963 que José Cardoso Pires decidiu pegar nos melhores contos dos seus dois primeiros livros, “Os Caminheiros e outros contos” e “Histórias de Amor”, revê-los amplamente e publicá-los. É assim que nasce “Jogos de Azar”, nove-contos-nove, o olhar atento do escritor sobre um mundo desigual e aqueles que nele vão sobrevivendo. Na carruagem da cauda do Oito-Correio partido da estação de Pinhal Novo ou na penumbra de uma sala onde uma luz ténue alumia a máquina de costura, no inferno de uma estrada a ser alcatroada ou num pequeno quarto de hotel barato, são as pessoas, com as suas misérias, os seus queixumes, os seus ressentimentos e as suas ilusões, o objecto da atenção de Cardoso Pires. É sobre elas que assenta o seu olhar clínico, descrevendo os gestos, imitando as falas, acompanhando os seus passos por caminhos desditosos, os tostões contados, a barriga a dar horas.
Importa dizer, porém, que “Jogos de Azar” é um livro desigual. Nele coabitam contos excepcionais (“Os Caminheiros”, “Estrada 43”, “Carta a Garcia” ou “Dom Quixote, as Velhas Viúvas e a Rapariga dos Fósforos”) com outros menos bons (“Ritual dos Pequenos Vampiros”, “Week-end”). Mas no que tem de bom, é realmente um prodígio. A sua matriz neo-realista fez com que servisse de contraponto aos livros publicados à época e que levou Gaspar Simões, “cujas recensões tinham o poder de destruir ou salvar um livro”, a escrever, “lançando, en passant, algumas farpas aos neo-realistas”: “Se alguma coisa faltava nos contos e romances do neo-realismo era, precisamente, realidade.” Na prosa directa, Cardoso Pires revela que pegar numa picareta, vogar no alto mar, entrar na cozinha de um aldeão ou dormir num vão de escada não são novidade para si. É daí que vem tanta realidade, essa mesma realidade que, nua e crua, salta de personagens como o cego, o “ratinho” ou a prostituta, para se vir agarrar à pele do leitor, ele também parte da história, “uma lua fria e um disco a servir de fundo, um Blue, um samba, qualquer dessas melodias a compasso que são o sonho das costureirinhas das caves.”
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