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quarta-feira, 4 de agosto de 2021

LIVRO: "Integrado Marginal - Biografia de José Cardoso Pires"



LIVRO: “Integrado Marginal - Biografia de José Cardoso Pires”,
de Bruno Vieira Amaral
Edição | Rui Couceiro
Ed. Contraponto Editores, Junho de 2021


“[…] nunca cultivei qualquer espírito de grupo. Quando muito, talvez nunca tenha passado em toda a minha vida de um integrado marginal ou coisa que se pareça… Para aí, sim: integrado e marginal […]”

Da colecção “Biografias de Grandes Figuras da Cultura Portuguesa Contemporânea”, com a chancela da Contraponto Editores, chega-me às mãos “Integrado Marginal”, retrato minucioso do escritor José Cardoso Pires, figura relevante das letras no Portugal do século passado. Escrito por Bruno Vieira Amaral, a biografia acompanha a vida e obra do escritor nascido em S. João do Peso, no concelho de Vila de Rei, a 02 de Outubro de 1925 e falecido em Lisboa, em 26 de Outubro de 1998, aos 73 anos. Ao longo de quase 600 páginas, o autor dá-nos conta do contexto familiar e da propensão de Cardoso Pires para as letras, dos primeiros escritos e da relação com o movimento neorrealista, das influências e evolução da sua obra, das preocupações sociais e políticas num Portugal tolhido pela repressão e ditadura salazaristas, da luta pela liberdade e pela democracia e da sua acção no pós-25 de Abril.

“Rebelde sem causa” nos tempos da adolescência e juventude, José Cardoso Pires notabilizou-se pelo seu lado brigão e por arrumar os assuntos “à cabeçada”, habilidade que haveria de aplicar vezes sem conta pela vida fora. Dos excessos com o tabaco e com a bebida, às noitadas nos bares e cabarés da capital, fica a ideia de uma personalidade libertina, boémia e impulsiva, mas fortemente ancorada nos valores da amizade e da cumplicidade. Os ambientes mais rasteiros e as figuras de carne e osso que neles se movimentam e sobrevivem acabaram por passar para as páginas dos seus livros, numa escrita depurada e contundente onde, sobretudo, importava aquilo que era dado a ver. Quem não gostava do que via e tinha o poder de cortar a direito era a censura que sobre o escritor exerceu uma constante vigilância, proibindo muitos dos seus escritos e apreendendo algumas das suas obras.

É nestes ambientes agitados, dignos do mais empolgante policial, que Bruno Vieira Amaral mergulha. Terá pela frente três anos de trabalho árduo, com alguns revezes de permeio, mas o resultado é francamente compensador. Ele, que sempre afirmou querer escrever “uma grande biografia”, tem aqui a prova de uma aposta ganha. “Integrado Marginal” é um livro genial, por aquilo que conta, mas, acima de tudo, pela forma como conta. Que Bruno Vieira Amaral é um artífice da palavra, sabemo-lo bem desde, pelo menos, “As Primeiras Coisas” ou esse marcante “Hoje Estarás Comigo no Paraíso”. Aqui, ele coloca todo o seu engenho e arte na maneira de dar a ver toda uma vida, tomando o leitor pela mão e mostrando-lhe os tempos e os modos de uma personalidade recheada de cambiantes como se de um filme se tratasse. Aliás, faz todo o sentido fazer esta colagem ao Cinema, porquanto a construção do livro reflecte um exercício de montagem criterioso, tanto naquilo que o seu autor decidiu aproveitar ou rejeitar, como na forma como hábitos, comportamentos, relações pessoais e casos de vida se entrelaçam com rigor, espontaneidade e fluidez.

Ainda dois aspectos que importa valorizar nesta biografia. Por um lado, o facto de não encontrarmos no livro, pelo menos declaradamente, qualquer traço de ficção. Bruno Vieira Amaral soube resistir estoicamente àquilo que terá sido uma enorme tentação e tudo o que nos é dado a ler é factual e resulta de milhares de horas de pesquisa exaustiva e das muitas conversas que manteve com figuras directa ou indirectamente implicadas na história de Cardoso Pires, nomeadamente a sua mulher, Edite, e as suas duas filhas, Ana e Rita. Por outro lado, “Integrado Marginal” fornece um conjunto de ferramentas essenciais para uma melhor leitura e compreensão da obra de José Cardoso Pires, fazendo de nós leitores mais capazes. É inegável que quanto mais soubermos do autor, das circunstancias em que o livro A ou o livro B foram escritos, mais facilmente encontraremos a chave que abre as portas desta ou daquela passagem. Se esta biografia outro mérito não tivesse, teria este, seguramente. Será com um renovado e mais apurado olhar que, de ora em diante, nos debruçaremos sobre a obra do escritor.

Não queria concluir esta recensão sem falar de Rui Couceiro e da Contraponto Editores, louvando a sua aposta num conjunto de jovens autores portugueses para biografar alguns dos vultos recentes da cultura portuguesa. Num País onde falar em hábitos de leitura é quase uma anedota, é notável que alguém esteja disposto a correr o risco de um investimento tão sério, sabendo que o retorno dificilmente compensará os custos. Mas é graças a estas “loucuras” que os leitores podem deliciar-se com obras primorosas como são “O Poço e a Estrada”, da autoria de Isabel Rio Novo, e “A Morte Não É Prioritária”, escrito por Paulo José Miranda, e que espelham a vida e a obra de Agustina Bessa-Luís e de Manoel de Oliveira, respectivamente. Chegou agora a vez de José Cardoso Pires com este fascinante “Integrado Marginal”, a afirmação de Bruno Vieira Amaral como um enorme biografo e uma obra marcante a todos os títulos, destinada a fazer história no panorama literário do nosso País.

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