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domingo, 25 de julho de 2021

TEATRO: "Pelo Canto da Sereia"



TEATRO: “Pelo Canto da Sereia”,
de Júlio Dinis (“O Canto da Sereia”)
Adaptação, Encenação e Direcção artística | Leandro Ribeiro
Coreografia e Movimento | Ana Guilherme Ruano
Sonoplastia e Instalações sonoras | Sonoscopia
Desenho e Confecção de figurinos e adereços | Marta Baldaia
Concepção plástica | Leandro Ribeiro
Interpretação | Beatriz Moreira, Cláudia Dias, Luís Rola, Marco Nunes, Alberto Pinto, Liliana Elsig, Maria Manuela Marques, Sofia Costa e a comunidade local
Direcção de produção | Clara Oliveira
Co-produção | Sol d’Alma - Associação de Teatro, Sonoscopia - Associação Teatral, Câmara Municipal de Ovar
Praça entre a Rua do Loureiro, Rua Padre Ferrer e Travessa João das Bichas, Ovar
24 Jul 2021 | sab | 18:00


“ - Essa lá me custa a crer, ti’ Cabaça. Eu sei que há muitas estranhas e esquisitas castas de peixes lá por esses mares de Cristo. Velho não sou eu nesta vida de pescador e, contudo, posso já dizer, sem me gabar, que tenho visto alguma coisa e que não ando nisto de todo às cegas. Vi já alguns peixes levantarem voo como os pássaros, outros eriçados de espinhos, que nem ouriços; já experimentei o abalo que causam as tremelgas vivas quando se lhes toca com o pé, e até um dia me mostraram de longe o chafariz de água que fazem as baleias ao respirar, mas agora as tais sereias… na verdade… peixes que falam e que cantam como a gente!…”

“O Canto da Sereia”, pequena novela desse “cronista de afectos puros, paixões simples, prosa limpa” que foi Julio Dinis, abre-nos as janelas de par em par sobre um pedaço de vida dos pescadores do Furadouro. Naquela tarde de fins de Maio, constrangidos pelo estado do mar e por uma tempestade que se aproxima, as lanchas bem puxadas para terra, são eles que conversam enquanto consertam as redes. Junto à água, brincam as crianças. Na taberna da tia Salgada, “a mais afamada da costa do Furadouro”, bebe-se vinho da Bairrada. Formam-se grupos onde se fala de tudo e de nada. Aquele do ti’ Cabaça era um dos que mais intensamente absorvia as atenções pelo assunto que se discutia. O caso não era para menos: Ti’ Cabaça era tido em grande conta na companha e aquela história que falava de sereias - “da cinta para baixo era um peixe completo, sem tirar nem pôr, escamas, cauda, barbatanas, finalmente, tudo (…), da cinta para cima era a mulher mais bonita que se tem visto no mundo” - ia vencendo o cepticismo do auditório, impondo-se como coisa séria e verdadeira, carregada de aventuras e de riscos.

Evocando os 150 anos do falecimento de Júlio Dinis, a Associação Cultural Sol d’Alma pôs de pé uma “performance de Rua para Mar” que envolveu os elementos do grupo e um vasto conjunto de participantes da comunidade local. História romântica com contornos de fantástico, inserida em ambiente realista, “Pelo Canto da Sereia” oferece, para além das mais significativas passagens do texto de Julio Dinis (que importa conhecer ou recordar), um vasto conjunto de elementos etnográficos e sociológicos nos quais a comunidade vareira se revê por completo. Através deles se redescobrem as lides do mar, as companhas numerosas, os lanços à recaxia, o aguardar ansioso da chegada das redes, o peixe vivo a saltar. Mas também o ócio nas tavernas, as brincadeiras e os risos das crianças, os pregões das peixeiras, as acesas disputas, o vernáculo nas falas e nos gestos, os temporais e as tragédias.

A adaptação que Leandro Ribeiro faz desta novela de Júlio Dinis privilegia o lado mais realista da obra, recuperando histórias e memórias solidamente inscritas no imaginário colectivo das gentes da beira-mar. A “guerra das peixeiras” que abre a peça é um daqueles momentos de grande intensidade e emoção pela verdade que transporta em si, assim como os instantes finais com a morte do jovem Pedro e os gritos de dor da sua mãe - estrondosa Maria Manuela Marques, numa prestação de deixar a plateia completamente arrepiada. Destaque-se o empenho de todo o elenco - actores e não actores - e o seu contributo para que o resultado final seja de grande qualidade, pleno de entusiasmo, dinamismo, espontaneidade e fluidez. Ainda uma palavra para a coreografia e movimento, assinados por Ana Guilherme Ruano, proporcionando momentos muito belos do ponto de vista estético - preciosas as vagas que se levantam. Mais uma peça de teatro de belo recorte oferecida pela Sol d’Alma, saudada por um numeroso público que soube brindar os seus criadores e intérpretes com um generoso e reconhecido aplauso.

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