LIVRO: “Quarto de Despejo”,
de Carolina Maria de Jesus
Ed. VS. Editor, 2020
“ … Quando eu estou com pouco dinheiro procuro não pensar nos filhos que vão pedir pão, pão, café. Desvio meu pensamento para o céu. Penso: será que lá em cima tem habitantes? Será que eles são melhores do que nós? Será que o predominio de lá suplanta o nosso? Será que as nações de lá é variada igual aqui na terra? Ou é uma nação única? Será que lá existe favela? E se lá existe favela será que quando eu morrer eu vou morar na favela?”
Cobrindo um período que vai de 15 de Julho de 1955 e 01 de Janeiro de 1960, “Quarto de Despejo” reflecte o quotidiano da autora, mulher jovem que sobrevive das sobras dos outros enquanto vê crescer os filhos sem que o futuro lhe traga qualquer tipo de esperança ou ânimo. O atoleiro em que caíram os habitantes da favela, a sua falta de instrução e de objectivos, somados à insalubridade do lugar e à sordidez e violência crescentes, mostra-lhe que solidariedade ou cumplicidade são palavras vãs, devendo contar apenas consigo própria na incessante luta pelo pão nosso de cada dia. Com a saúde cada vez mais débil, as crianças sempre a crescer e o custo de vida a atingir níveis insustentáveis, a autora vive momentos de autêntico desespero, não se cansando de apontar o dedo a uma classe política pródiga em palavreado, sempre presente em véspera de eleições mas completamente desinteressada dos reais problemas das populações depois de eleita, discriminando-as e desprezando-as.
Pintadas de cores amargas, as paisagens da favela surgem totalmente desprovidas de luz ou de brilho, excepção feita aos instantes que Carolina Maria de Jesus dedica à leitura e à escrita. A parca instrução recebida revelou-se suficiente para que a autora desenvolvesse em si o gosto pela literatura, adoptando-a como arma de denúncia de uma sociedade profundamente desigual. É pela escrita que Carolina Maria de Jesus sai em busca de uma espécie de redenção, em rasgos de génio que mostram o quão libertadoras podem ser as palavras. A repetição exaustiva dos gestos do quotidiano têm o condão de mostrar o beco sem saída em que a vida da autora se transformou, mas são a forma mais adequada à criação de um ambiente claustrofóbico, refém dessa circularidade, onde campeiam a dor a náusea. Feito de verdade, a oralidade popular em forma de escrita, o livro convida a mergulhar os pés na lama e a percorrer o “quarto de despejo da sociedade”. Deve o leitor estar preparado para uma sucessão de murros no estômago. No final saberá reconhecer, na sua real dimensão, as múltiplas faces da pobreza.
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