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sábado, 24 de julho de 2021

LIVRO: "Quarto de Despejo"



LIVRO: “Quarto de Despejo”,
de Carolina Maria de Jesus
Ed. VS. Editor, 2020


“ … Quando eu estou com pouco dinheiro procuro não pensar nos filhos que vão pedir pão, pão, café. Desvio meu pensamento para o céu. Penso: será que lá em cima tem habitantes? Será que eles são melhores do que nós? Será que o predominio de lá suplanta o nosso? Será que as nações de lá é variada igual aqui na terra? Ou é uma nação única? Será que lá existe favela? E se lá existe favela será que quando eu morrer eu vou morar na favela?”

Numa altura em que a pobreza extrema não cessa de aumentar – o Banco Mundial anuncia que a COVID-19 e a recessão global podem fazer com que 150 milhões de pessoas caiam nesse limiar ainda este ano -, mergulho em “Quarto de Despejo”, retrato imensamente triste e cruel da vida na favela do Canindé, a Norte da cidade de São Paulo, há sessenta anos atrás. Escrito em forma de diário por Carolina Maria de Jesus, habitante da favela que trava uma luta diária para garantir alimentos para si e para os seus três filhos menores, o livro retrata de forma pungente a miséria mais extrema, tanto física como moral, ao mesmo tempo que lança um olhar sobre as políticas económicas e sociais da época, naquilo que constitui o retrato fiel de um Brasil a duas velocidades.

Cobrindo um período que vai de 15 de Julho de 1955 e 01 de Janeiro de 1960, “Quarto de Despejo” reflecte o quotidiano da autora, mulher jovem que sobrevive das sobras dos outros enquanto vê crescer os filhos sem que o futuro lhe traga qualquer tipo de esperança ou ânimo. O atoleiro em que caíram os habitantes da favela, a sua falta de instrução e de objectivos, somados à insalubridade do lugar e à sordidez e violência crescentes, mostra-lhe que solidariedade ou cumplicidade são palavras vãs, devendo contar apenas consigo própria na incessante luta pelo pão nosso de cada dia. Com a saúde cada vez mais débil, as crianças sempre a crescer e o custo de vida a atingir níveis insustentáveis, a autora vive momentos de autêntico desespero, não se cansando de apontar o dedo a uma classe política pródiga em palavreado, sempre presente em véspera de eleições mas completamente desinteressada dos reais problemas das populações depois de eleita, discriminando-as e desprezando-as.

Pintadas de cores amargas, as paisagens da favela surgem totalmente desprovidas de luz ou de brilho, excepção feita aos instantes que Carolina Maria de Jesus dedica à leitura e à escrita. A parca instrução recebida revelou-se suficiente para que a autora desenvolvesse em si o gosto pela literatura, adoptando-a como arma de denúncia de uma sociedade profundamente desigual. É pela escrita que Carolina Maria de Jesus sai em busca de uma espécie de redenção, em rasgos de génio que mostram o quão libertadoras podem ser as palavras. A repetição exaustiva dos gestos do quotidiano têm o condão de mostrar o beco sem saída em que a vida da autora se transformou, mas são a forma mais adequada à criação de um ambiente claustrofóbico, refém dessa circularidade, onde campeiam a dor a náusea. Feito de verdade, a oralidade popular em forma de escrita, o livro convida a mergulhar os pés na lama e a percorrer o “quarto de despejo da sociedade”. Deve o leitor estar preparado para uma sucessão de murros no estômago. No final saberá reconhecer, na sua real dimensão, as múltiplas faces da pobreza.

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