LIVRO: “ - Hífen - “,
de Patrícia Portela
Ed. Editorial Caminho, Abril de 2021
“Ler não é só ler. Ler é quem escreve e o que escreve, juntos. É o quando e o onde lemos. Ler é hifanar. Mesmo que todas as palavras escritas sejam feitas de letras coladinhas umas às outras. Ler é o hífen entre o leitor e o autor e nos permite compreender o que estamos a ler. Entre a novidade que lemos e o que já sabemos. Ler é um casamento. É partilhar a cama de mentes diferentes. Ler é vestir a roupa do outro quando a nossa ainda está por lavar. Ou já não nos serve. É ser e não ser em simultâneo, e isso fazer sentido. É deixar-se ficar em casa e mesmo assim sair à rua e visitar palavras que já estiveram em tantos outros lugares e pensamentos. É não regressar.”
Oferecendo-se a múltiplas leituras, “ - Hífen - ” adopta um cenário distópico para melhor discorrer sobre “nós e os outros”. A escrita é tomada como um acto de rebeldia porquanto constitui uma “maneira de ver o que se pensa e de o mostrar a outros cérebros”; nos cuidados de saúde, a “eficácia total da mecanização em caso de situações absurdas ou inesperadas” tende a apagar do dicionário a palavra humanização; a cultura, entendida como um “tranquilizante”, é gerida por “dedicados amanuenses com francas aspirações políticas”; e os jornais e revistas abandonaram a grande reportagem política e as reflexões filosóficas e são agora ocupados por “múltiplos artigos (muito concisos) sobre produtos de limpeza doméstica ou beleza corporal, sugestões alimentares ou conselhos para passar os tempos livres”. Enquanto isso, “um ser humano consegue levar uma vida de cão, trabalhar em condições miseráveis (e das quais se queixa compassivamente aos amigos) e votar com convicção num ditador que lhe cortará o salário, dizendo -lhe que não há alternativa”.
Entre notas de um caderno, entradas de um muito particular alfabeto e ementas peculiares, o que Patrícia Portela nos vem dizer é que os hífens estão em toda a parte. Juntam coisas e pessoas, fazem a ponte para novos caminhos, multiplicam-se em conceitos, dão sentido aos sonhos e carregam às costas os males do mundo. Têm as costas largas, os hífens. São arautos da desgraça e bodes expiatórios. Mas são imprescindíveis, fazem parte da nossa vida, até nas mais pequeninas coisas. Estão no nosso código genético e trazem consigo a marca da sobrevivência. Que os “eus” tendam a virar-se para si, a erguer muros à sua volta e a proclamar a sua superioridade perante os demais, não passa de um erro. Erro que teimamos em alimentar, seres superiores duma Flandia em queda livre, perdulários e displicentes, entregues a algoritmos que vão tomando conta de nós e da capacidade de cada um pensar pela sua cabeça. De uma lucidez e eficácia incríveis, as baterias apontadas ao individualismo e à egomania, “ - Hífen - ” é um livro imprescindível a quem ousa ver mais longe.
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