CINEMA: “Visões do Império”
Realização | Joana Pontes
Argumento | Joana Pontes, Miguel Bandeira Jerónimo, Filipa Lowndes Vicente
Fotografia | Rui Xavier
Montagem | Rui Branquinho, Joana Pontes
Interpretação | Sandra Paraíso, Eduardo Martinho, Filipa Lowndes Vicente, Catarina Mateus, Miguel Bandeira Jerónimo, Margarida Dias da Silva, Afonso Ramos, Carmen Rosa
Produção | Filipa Reis, Patrícia Faria
Portugal | 2020 | Documentário | 92 Minutos | Maiores de 12
Cinema Vida
17 Jul 2021 | sab | 18:15
Da Feira da Ladra à Torre do Tombo, do Arquivo Histórico Ultramarino ao Arquivo da Botânica da Universidade de Coimbra ou ao Arquivo de Documentação Fotográfica, no contacto com compradores e vendedores de fotografias e álbuns antigos, historiadores, investigadores e arquivistas, descobrimos que a fotografia ou o postal ilustrado nos podem dizer muito mais se fizermos o exercício de virá-lo ao contrário, lendo o que eventualmente se encontra no verso. O texto contraria, em muitos casos, a ideia que temos se atentarmos apenas na imagem. A dignidade de uma mulher preta com uma criança ao colo vê-se só na aparência, transformada que é por um texto manuscrito onde se lê “(…) estas mulheres do Norte [de Angola] não parece mas são mais estúpidas e selvagens que as do Sul”. Confrontar o espectador com esta linguagem crua, racista, banalizada e tão reprodutora das desigualdades latentes nas relações coloniais é um dos grandes méritos deste documentário. De forma clara, aquilo que Joana Pontes nos mostra é a importância de ir ao outro lado das coisas se quisermos abraçar “História” e “verdade” como partes de uma mesma equação.
Instrumento de propaganda do Império, a fotografia traz com ela uma máxima: “Conhecer para dominar; dominar para explorar.” É muito evidente a forma como os sucessivos Governos se apropriam da imagem para fazer passar uma ideia de ordem, de controlo e de segurança, uma ilusão de soberania sobre um espaço conquistado, atraindo assim um bom número de colonos com as respectivas famílias e, dessa forma, escoando a pobreza e diluindo eventuais focos de perturbação da ordem social no território da Metrópole. O documentário é todo um manancial de informação baseado em imagens pertencentes a colecções individuais ou do Estado, mas a visão unilateral impõe-se ao ponto de se tornar chocante. O auge será a divulgação nas Nações Unidas (e mais tarde nas montras do Palácio Foz e na Sociedade de Geografia, com inusitados índices de afluência) das imagens chocantes dos massacres no Norte de Angola, em 15 de Março de 1961, com os corpos dos fazendeiros brancos mutilados e espalhados pelo chão. Do lado contrário, porém, não há testemunhos da revolta dos trabalhadores negros do algodão, tão pouco sobre a violenta repressão que se lhe seguiu ou sobre o número de negros mortos, cinco a dez vezes superior ao dos brancos, de acordo com as estimativas.
Um ano depois, Joana Pontes regressa às questões iniciais. Ficou a saber - e nós com ela - que há milhões de imagens, muitas à guarda de instituições privadas ou empresas, em casas particulares, dispersas na Feira da Ladra e noutros mercados, a maior parte nos Arquivos públicos. Deu-nos a ver muitas delas. Ouvimos as suas explicações, podemos contextualizá-las de forma adequada e o nosso olhar, naturalmente, mudou. À aparente neutralidade dos motivos das fotografias, passámos a somar uma interrogação persistente: Qual o dever e a utilidade de mostrar os vários lados desta história que entretanto descobrimos? A pergunta não tem uma resposta imediata. Os usos e sentidos da fotografia são numerosos e ricos, estão longe de serem facilmente apreendidos e resumidos. A presença de uma fotografia ou a falta dela, ou ainda o tipo de fotografia, afecta de forma decisiva o modo como se olha para a História do Império. Estas presenças e omissões contribuem para uma batalha entre narrativas: De um lado, ficam os benefícios e o desenvolvimento que os portugueses levaram aos territórios do Império e a certeza que não fomos dos piores. Do outro, o racismo, a desumanidade e a violência da colonização.
O que “Visões do Império” reafirma é que libertarmo-nos do nosso passado colonial não é tarefa fácil. As fotografias revelam a colonização como um processo que separou, assente na superioridade de uns, desta forma legitimando a exploração, a exclusão e a violência sobre outros. No regresso à normalidade das narrativas familiares e aos livros onde estão as fotografias alegres dos tempos e lugares onde havia paz, antevemos os milhares de portugueses que levaram uma vida melhor num espaço maior, desafogados das dificuldades e falta de perspectivas que existiam na Metrópole. Mas nesta constatação, não cabem os outros que raramente aparecem nas imagens. “Visões do Império” revela-se, neste sentido, um documento fundamental para o conhecimento da colonização, o que isso significou para todos os envolvidos e como moldou sentidos de identidade. Uma achega preciosa para uma compreensão partilhada da nossa História e que nos permite encarar, de forma igualmente partilhada, o nosso presente e o nosso futuro.
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