LIVRO: “Diário de um Médico no Combate à Pandemia”,
de Gustavo Carona
Edição | Francisco Camacho
Ed. Oficina do Livro, Maio de 2021
“Cada vez eram mais os médicos e enfermeiros e tantos outros profissionais de saúde a soltar os seus gritos de desespero catalogando o que se estava a passar nos Serviços de Urgência, nos internamentos e, principalmente, as pessoas ligadas aos Cuidados Intensivos, como 'medicina de guerra', 'catástrofe', 'colapso do Serviço Nacional de Saúde', mas isto de pouco servia para pôr a população ou a opinião pública em sentido. Agora, as imagens de filas de ambulâncias que não conseguem sequer chegar ao Serviço de Urgência projectam a incerteza com que todos ficamos se precisarmos de ir ao hospital seja por que motivo for. O confinamento mais duro, o título de piores do mundo e o poder de comunicação destas imagens foram extremamente eficazes a dar a volta à história.”
Partindo dos seus escritos “a quente”, Gustavo Carona busca a distância para melhor poder analisar a evolução do seu pensamento e das suas acções e reflectir sobre as causas e os efeitos das sucessivas vagas da pandemia. Este é, pois, um livro escrito a dois tempos, encerrando processos autocríticos onde se cruzam emoção e argúcia, razão e coração. Das delicadas decisões políticas às situações de crise económica e social que atingem muitos portugueses, do negacionismo, relativismo e teorias da conspiração ao “olho do furacão” - a Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de Pedro Hispano, em Matosinhos, onde dezenas de abnegados (mas exaustos) profissionais de saúde travam lutas diárias para salvar vidas -, Gustavo Carona expõe o seu olhar lúcido, ilustrando-o com histórias nem sempre de final feliz mas que são o espelho de uma realidade que muitos teimam em desvalorizar ou negar.
Insultado, enxovalhado, vilipendiado, acusado de colagem aos decisores políticos e de espalhar o medo a troco sabe-se lá de quê, Gustavo Carona tem tido a coragem e a coerência de se mostrar firme nas suas convicções quando o mais fácil seria desistir. A insistência na defesa de medidas impopulares mas essenciais para conter a pandemia, como o confinamento ou o distanciamento social, é repetido à exaustão neste livro, naquilo que pode ser visto como uma das suas fragilidades. “Já não posso ouvir este gajo, está sempre a dizer a mesma coisa”, parece-me adivinhar nas vozes dos mais críticos. Mas como não “bater na mesma tecla”, se as pessoas ignoram as recomendações e persistem no erro? Como baixar os braços nessa luta incessante pela formação e literacia em saúde da população se a ideia que continua a prevalecer é a de que as coisas só acontecem aos outros? Se mais dúvidas houvesse quanto à importância e à necessidade de vozes como a de Gustavo Carona, a quarta vaga da pandemia está aí para o provar.
Pela humildade no reconhecimento de juízos precipitados ou errados feitos em contextos diferentes, pela forma como se abre ao contraditório, pela frontalidade na assunção das suas certezas, pela verdade na partilha do seu saber e pela firmeza do seu carácter e dos seus princípios, Gustavo Carona merece o meu respeito e a minha gratidão. Isto não faz do seu livro uma obra-prima, talvez não faça dele, sequer, um bom livro, mas é, para além de uma achega importante para a história desta pandemia, uma luz sobre as águas escuras e densas da falsidade e do egoísmo. Por fim, importa realçar o facto de os direitos de autor de “Diário de um Médico no Combate à Pandemia” reverterem para a Associação Saber Compreender e para os Médicos Sem Fronteiras. Se outra não houvesse, esta seria já de si uma boa razão para adquirir este livro.
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