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domingo, 27 de junho de 2021

LIVRO: "Afastar-se (treze contos sobre água)"



LIVRO: “Afastar-se (treze contos sobre água)”,
de Luísa Costa Gomes
Edição | Cecília Andrade
Ed. Publicações Dom Quixote, Maio de 2021


“A meio de uma página do caderno: ‘Para não seres só tu a contar histórias no teu livro, deixa-me contar também eu um ou dois episódios da Guerra do Ultramar’, e depois, a meio da outra página: ‘Tu procuras sempre o lado original, insólito, irónico.’ Sei que esse tu sou eu, que lhe pedi durante anos para escrever os episódios que me ia contando e cujos pormenores e sequências também vou esquecendo.”

Estendo o braço e colho um copo do armário. Rodo a torneira, encho-o de água, levo-o à boca e, em treze goles breves, refresco-me e sacio-me. Assim é “Afastar-se”, o mais recente trabalho de Luísa Costa Gomes, treze contos sobre água que, tal como o precioso líquido, alimentam e purificam. Escutando uma diluviana chuva que tudo lava, sorvendo o cheiro do sabão de amêndoas e mel que se liberta da bacia onde um homem lava os pés a outro, fantasiando com um chuveiro fresco na selva sufocante da Guiné ou seguindo os passos de uma resoluta Giulia que se entrega às águas no estreito do Helesponto, somos levados a perceber o quanto o elemento água está presente nas nossas vidas, não apenas por tudo aquilo que dá mas sobretudo pelo que promete, esconde ou retira.

Desregrado, caótico, sem preocupações cronológicas, geográficas, temáticas ou mesmo estilísticas, “Afastar-se” é o resultado de mais de cinco anos a coleccionar contos “que de uma maneira ou de outra metem água”. É, na sua essência, um livro engenhoso onde o elemento água se impõe no início de cada conto ou se deixa surpreender ao virar da página, subtil, fugaz. Que nos lembra uma relação que tem o seu início no ventre das nossas mães e vai emergindo como sinónimo de vida; mas que, ao mesmo tempo, nos dá a nota do efémero que é “escrever na água”. Um livro que nos pega de mansinho, nos toma na corrente breve que logo se torna torrencial e nos arrasta para o largo, nos faz perder o pé e nos submerge. Tudo isto “sem aflição, nem susto, por tentativa e erro, e quase se afogando um par de vezes sem sequer dar por isso.”

Numa escrita desconcertante, viva e livre, Luísa Costa Gomes “abre o livro”, lançando mão de uma prodigiosa imaginação que alia ao engenho de contar uma história. Como volutas que se erguem no ar, belas e imprevisíveis, assim é este “mundo líquido” e as vidas que o povoam, naquilo que têm de “original, insólito, irónico”. Objectivas, precisas, densas ou nebulosas, quase irreais, as figuras, os lugares e as situações sucedem-se, moldadas pela força criadora da autora, oferecendo um todo amalgamado, o nexo a brincar às escondidas, a força da razão a ceder o espaço às emoções mais elementares. Sem bóias nem tábuas de salvação que valham ao leitor, a solução é deixar-se ir, como num sonho acordado, um sorriso fixo no rosto e na alma. Enquanto isso, a cabeça dá voltas e mais voltas, sem soluções imediatas mas com a certeza de um final feliz.

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