LIVRO: “Afastar-se (treze contos sobre água)”,
de Luísa Costa Gomes
Edição | Cecília Andrade
Ed. Publicações Dom Quixote, Maio de 2021
“A meio de uma página do caderno: ‘Para não seres só tu a contar histórias no teu livro, deixa-me contar também eu um ou dois episódios da Guerra do Ultramar’, e depois, a meio da outra página: ‘Tu procuras sempre o lado original, insólito, irónico.’ Sei que esse tu sou eu, que lhe pedi durante anos para escrever os episódios que me ia contando e cujos pormenores e sequências também vou esquecendo.”
Desregrado, caótico, sem preocupações cronológicas, geográficas, temáticas ou mesmo estilísticas, “Afastar-se” é o resultado de mais de cinco anos a coleccionar contos “que de uma maneira ou de outra metem água”. É, na sua essência, um livro engenhoso onde o elemento água se impõe no início de cada conto ou se deixa surpreender ao virar da página, subtil, fugaz. Que nos lembra uma relação que tem o seu início no ventre das nossas mães e vai emergindo como sinónimo de vida; mas que, ao mesmo tempo, nos dá a nota do efémero que é “escrever na água”. Um livro que nos pega de mansinho, nos toma na corrente breve que logo se torna torrencial e nos arrasta para o largo, nos faz perder o pé e nos submerge. Tudo isto “sem aflição, nem susto, por tentativa e erro, e quase se afogando um par de vezes sem sequer dar por isso.”
Numa escrita desconcertante, viva e livre, Luísa Costa Gomes “abre o livro”, lançando mão de uma prodigiosa imaginação que alia ao engenho de contar uma história. Como volutas que se erguem no ar, belas e imprevisíveis, assim é este “mundo líquido” e as vidas que o povoam, naquilo que têm de “original, insólito, irónico”. Objectivas, precisas, densas ou nebulosas, quase irreais, as figuras, os lugares e as situações sucedem-se, moldadas pela força criadora da autora, oferecendo um todo amalgamado, o nexo a brincar às escondidas, a força da razão a ceder o espaço às emoções mais elementares. Sem bóias nem tábuas de salvação que valham ao leitor, a solução é deixar-se ir, como num sonho acordado, um sorriso fixo no rosto e na alma. Enquanto isso, a cabeça dá voltas e mais voltas, sem soluções imediatas mas com a certeza de um final feliz.
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