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domingo, 2 de maio de 2021

LIVRO: "Os Cachorros / Os Chefes"



LIVRO: “Os Cachorros / Os Chefes”,
de Mario Vargas Llosa
Texto original | “Los Jefes” (1959); “Los Cachorros” (1967)
Tradução | Pedro Tamen
Ed. Publicações Dom Quixote, Junho de 2011


“Começou a pôr gravata e casaco, a pentear-se com poupa à Elvis Presley e a engraxar os sapatos: que se passa contigo, Pichinha, estás que ninguém te conhece, tipo elegante. Ele, nada, de bom humor, não se passa nada, era preciso cuidar um pouco do aspecto, não?, inchado, a soprar as unhas, parecia o de antes. Que alegrão, irmão, dizíamos-lhe nós, que revolução ver-te assim, não será que...?, e ele, como um torrão de açucar, se calhar, Teresita?, de repente depois, gostava dela?, talvez sim, como de um chiclete, talvez sim.”

Primeira obra publicada de Mario Vargas Llosa, “Os Chefes” surgiu sob os melhores auspícios, valendo ao autor o seu primeiro reconhecimento literário ao ser galardoado em Espanha com o Prémio Leopoldo Alas. Trata-se de um conjunto de seis contos escritos entre os anos de 1953 e 1957, alguns deles muito curtos, encabeçados por aquele que empresta o título ao livro. Oito anos mais tarde, o seu percurso de escritor já perfeitamente firmado, escreveu “Os Cachorros”, uma metáfora da sociedade de Lima em jeito de tragicomédia. Em boa hora se recuperaram estes que são os primórdios da vasta obra do Prémio Nobel da Literatura em 2010, exemplos de unidade formal admirável e, ao mesmo tempo, reveladores das preocupações sociais e da extraordinária qualidade da escrita deste autor.

Sob uma fina capa, de ilusão e candura feita, o leitor descobrirá, ao longo destes contos, todo um conjunto de inquietações e dilemas próprios de quem busca afirmação nessa passagem da infância para a adolescência e, mais tarde, para a juventude e a idade adulta. Bens únicos, recheados dos mais altos e nobres valores, a inocência e a imaturidade revelam-se como pontos fracos que urge corrigir face a um entorno feroz que castiga aqueles que resistem a aceitar as regras ou que não se adaptam a cumpri-las. Conservadora e conformista, a sociedade burguesa da capital peruana é-nos revelada em toda a sua hipocrisia, a diferença tratada com insensibilidade e desprezo, os “desalinhados” postos à margem, entregues a si mesmos, sentindo na carne o peso do preconceito e da maledicência.

Mario Vargas Llosa mostra uma enorme ternura pelos mais desfavorecidos, enobrecendo cada uma destas suas personagens com atributos que lhes oferecem dignidade, compreensão e simpatia. A tão desejada aceitação, porém, apenas a golpes de audácia inimagináveis poderá vir a ser alcançada, os valores da coragem e da honra a fazerem-se cobrar a um preço altíssimo, não raramente com a própria vida. Nessa medida, “Os Cachorros / Os Chefes” levanta um conjunto de questões de enorme importância na compreensão das dinâmicas de grupo das sociedades marcadamente latinas, contextualizando devidamente as problemáticas da liderança, da virilidade, da sexualidade ou da vingança. Os ambientes são sempre tensos e violentos, oferecendo-nos uma visão clara do mundo do autor na sua passagem para a idade adulta. Um mundo que reconhecemos de forma aguda ainda hoje, o que empresta ao livro um importante cunho de actualidade.

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