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sábado, 1 de maio de 2021

LIVRO: "O Senhor Ventura"



LIVRO: “O Senhor Ventura”,
de Miguel Torga
Ed. Publicações Dom Quixote, 1999
Colecção Mil Folhas Público, Março de 2003


“Mas os outros eram mais e batiam-se como desesperados, que ou triunfavam, ou não tinham salvação. Traziam aquela audácia que o senhor Ventura conhecera já, nos tempos em que também ele tinha tudo a ganhar e nada a perder de uma refrega. Eram um jogo no futuro, enquanto o alentejano e os companheiros eram somente uma defesa do passado. E, por isso, acabaram por levar a melhor. Entraram, mataram, saquearam, incendiaram, e só por milagre o senhor Ventura conseguiu salvar-se na escuridão, com o corpo do Pereira às costas, a gemer, ferido de morte por uma bala que lhe atravessara o peito.”

Obra da juventude do enorme prosador e poeta que foi Miguel Torga, “O Senhor Ventura” terá sido escrito de uma assentada, “na idade em que os atrevimentos são argumentos”. Regressando a ele quarenta anos mais tarde, o autor decidiu recuperá-lo, limpando-o das principais impurezas, dando um jeito aos comportamentos mais desacertados e procurando, enfim, torná-lo mais legível. Não quis votar ao esquecimento aquilo que considera “uma história portuguesmente verosímil, dado que somos andarilhos do mundo, capazes em todo o lado do melhor e do pior”. E aqui temos a obra de novo trazida a lume. Felizmente.

Em busca de paralelismos, acorre-me de imediato à ideia a “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, essa obra maior da nossa literatura. Mas se a gesta dos Descobrimentos parece fonte de inspiração óbvia para o autor, o facto de ter emigrado para o Brasil com a idade de 13 anos e de ter trabalhado durante cinco anos na fazenda de um tio, no Estado de Minas Gerais, terá sido determinante na feitura da obra. Creio poder encontrar-se aí a base deste “O Senhor Ventura”, a história de um homem que deixa o seu Alentejo natal para abraçar mil e uma aventuras por terras do Oriente, antes de nova passagem por Portugal e do regresso definitivo à China onde viria a morrer.

No confronto directo com obras como “Os Bichos”, “Contos da Montanha”, “Novos Contos da Montanha” ou os seis volumes de “A Criação do Mundo”, “O Senhor Ventura” sai claramente a perder. Apesar dos “retoques”, nele é perceptível a urgência de contar uma história, mais do que a ambição de primar por uma boa história. Não que esta seja uma má história, longe disso. Nela abundam momentos de acção bem urdidos, lutas sanguinárias entre bons e maus, mistério e sedução, as grandes paisagens e, claro, o vermelho das paixões. Lida à distância, nela encontramos novos ciclos da velha História, o boom da emigração para França ou a aventura colonialista à cabeça. Falta-lhe, porém, uma ligação forte e consistente entre o todo, algo que torne a história convincente. Não sendo pouco, resumido a um mero momento de diversão “O Senhor Ventura” sabe a pouco.

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