LIVRO: “Jornada de África”,
de Manuel Alegre
Ed. Publicações Dom Quixote, 1989
Colecção Grandes Autores de Língua Portuguesa (Edição Visão / Dom Quixote, 2003)
“O Tenente diz-lhe que tem sorte, logo por acaso está ali o alferes Roque, de quem os jornais falaram muito no início da guerra. Ei-lo junto ao balcão, tem o cabelo loiro, a pele muito branca, parece um rapaz de dezoito anos, um pagem de gravuras antigas. Há nele qualquer coisa de angelical, dir-se-ia que é a inocência com uma farda vestida. Reparando bem, o sorriso é estranho, fica-se na dúvida se não será tique. Sorri sempre. Agora Sebastião tem a certeza de que não é para ele nem para nenhum dos presentes. Não pode sequer garantir que ele esteja a ver alguém. É certo que fita Sebastião, mas o olhar dele, vendo bem, é um olhar branco, vazio e branco. Sebastião sente um arrepio: podia ser o olhar da morte.”
“Jornada de África” é sobre a Guerra do Ultramar. Sobre a sua génese e as suas figuras, os seus palcos, as suas consequências. É sobre palavras proibidas, como autodeterminação. Sobre poemas raros, amores clandestinos, baladas de Adriano. Sobre o bafo quente e húmido da noite de Luanda, carregado do cheiro da guerra. Sobre jipes e jipões, unimogues e GMCês. Sobre Padres Nossos e Avés Marias, Ícolo e Bengo, a Baixa do Cassanje, o 4 de Fevereiro. Sobre gente a arder regada pelo napalm, tripas ao léu, orelhas decepadas, cabeças espetadas em paus. Sobre o branco das paredes, das batas, dos lençóis, dos feridos, do medo. Sobre o João e o Maldonado, o Bandarilha e o Duas Rodas. Sobre a vingança do chinês e os tomates do padre Inácio. Sobre o Quinto Império, o Grande Império do Avesso e o Anti-Império. Sobre Sebastião, morto ou vivo, vivo ou morto.
Fazer correr, lado a lado, “jornadas de África” separadas por quatro séculos é, tão somente, uma marca do génio do autor e um motivo de deleite para quem, desta intertextualidade, retira o melhor proveito. Contundente metáfora sobre uma guerra fratricida, o livro é um intenso e dilacerante testemunho nos quais se percebem aspectos de cariz autobiográfico que marcaram e marcam a vida e obra do “poeta da liberdade”. Com um ritmo narrativo preciso e uma linguagem a oscilar entre a crueza e o lirismo, Manuel Alegre oferece-nos imagens de um enorme realismo que nos confrontam com as contradições de uma guerra desnecessária, absurda e iníqua. De qualquer guerra, atrevo-me a dizer, porque é impossível falar de sensatez, inteligência ou sequer de lógica quando de matar e de morrer se trata. Um livro incontornável para quem busca um maior conhecimento e compreensão do mais negro momento da nossa História recente.
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