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sábado, 30 de janeiro de 2021

LIVRO: "O Museu da Inocência"



LIVRO: “O Museu da Inocência”,
de Orhan Pamuk
Tradução | Miguel Romeira
Ed. Editorial Presença, Maio de 2010 (1ª edição)


“O poder de um objecto jaz indubitavelmente nas memórias que guarda em si, e também nas vicissitudes da nossa imaginação e das nossas memórias. Noutra altura qualquer eu não teria tido nenhum interesse pelas barras de sabonete de Edirne que estão neste cesto, e talvez até as achasse beras, mas, tendo-me sido oferecidas como presentes do loto na noite de passagem de ano, estes sabonetes em forma de damasco, marmelo, uva e morango fazem-me recordar o ritmo lento e humilde das rotinas que governam as nossas vidas. Acredito piamente e com toda a sinceridade que não sou o único a ter estes sentimentos, e que, ao verem estes objectos muitos anos mais tarde, os visitantes do meu museu sentirão o mesmo.”

Tendo por palco a cidade de Istambul, entre os anos de 1974 e 2003, “O Museu da Inocência” convida o leitor a viver o drama de Kemal Basmaci, membro da “alta sociedade turca”, que se vê cativo de uma paixão destruidora, prosseguindo no caminho que a sua razão lhe diz ser o errado, mesmo sabendo que isso apenas lhe trará mais sofrimento. Narrado na primeira pessoa, o livro é uma viagem sentimental cujo ponto de partida e de chegada é o próprio protagonista, nela se evidenciando os sentimentos desencontrados, as atitudes incoerentes, a noção de adultério ou as diferenças sociais vincadas pelo rigor das tradições ancestrais. Tudo isto numa Istambul demasiado fechada ao Ocidente, com as suas idiossincrasias e contradições, as ruas estreitas e esburacadas, as mulheres em casa e os homens nos cafés a beber raki, a música tradicional nos famosos gazinos, os cinemas de sessões contínuas, o movimento de barcos no Bósforo, a chamada para as orações ou o recolher obrigatório.

Ao questionar a noção de realidade, “O Museu da Inocência” transporta-nos para fora de si mesmo, ao encontro de um espaço físico com o mesmo nome. Situado entre a Avenida Istiklal e Tophane, no pitoresco bairro de Çucurcuma, o Museu da Inocência abriu as suas portas ao público na Primavera de 2012, vindo a ser galardoado em 2014 com o Prémio Museu Europeu do Ano. Concebido em paralelo com a escrita do próprio livro, o Museu da Inocência distribui o seu espólio por 83 vitrinas, nelas podendo o visitante encontrar um saleiro de porcelana, uma fita métrica em forma de cão, um abre-latas que mais parece um instrumento de tortura, uma garrafa de óleo de girassol Batanay, travessões para o cabelo, fotografias envelhecidas, recortes de jornais, folhas de calendário, um par de brincos, um batom vermelho ou 4213 beatas de cigarros. Tudo objectos que as personagens ficcionadas do livro viram, escutaram ou tocaram, tornados reais pelas mãos de alguém que soube proceder a uma criteriosa recolha, catalogação e exposição num espaço dedicado.

Nesta ligação do real ao ficcionado, nesta genial estrutura narrativa arquitectada de forma a que sujeitos e objectos se misturem e confundam, reside o grande fascínio do livro. No seu propósito de dar a ver as linhas com que se tece um verdadeiro amor, Orhan Pamuk – agraciado com o Nobel da Literatura em 2006 – transforma o livro num verdadeiro catálogo, replicando o jogo de “faz de conta” que conforma toda a história, mas tornando-o real porque reais são os objectos. Ler o livro e, consequentemente, querer visitar o museu, torna-se a mais legítima das ambições de qualquer leitor, o que demonstra o quanto a proposta tem de extraordinário. O resto é uma escrita sensível, a cadência extremamente lenta de quem sabe esperar, o desfiar de memórias que mantém vivos os lugares, as coisas e as pessoas. Tudo narrado com uma sinceridade desarmante e com o simples propósito de transformar a felicidade individual numa experiência colectiva. O que é apanágio dos livros. E dos museus.

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