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segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

LIVRO: "Casos do Beco das Sardinheiras"



LIVRO: “Casos do Beco das Sardinheiras”,
de Mário de Carvalho
Ed. Porto Editora, Novembro de 2013 (reimpresso em Agosto de 2019)


“Uma noite, a Lecas Pasteleira, serigaita de quinze anos, acordou com humidade na cara e gritou para a mãe que dormia no quarto ao lado:
– Ai, mãe, que estou toda molhada, venha cá, senhora!
Acenderam-se as luzes, no meio de grande sarrabulho, e os familiares da Lecas constataram que lhe chovia abundantemente na cara. Não que a chuva viesse de fora, por fendas arreliadoras, que a rua estava quieta, serena e seca. Era antes uma nuvem, formada naquele ar do quarto, aí do tamanho duma almofada, que despejava sobre a cara da Lecas uma chuvada violenta.”

Está perto de se completar quarenta anos que Mário de Carvalho lançou os seus “Contos da Sétima Esfera”, primeiro livro de uma vasta e aclamada obra que faz dele uma das vozes mais importantes da nossa literatura contemporânea. Seguiu-se, precisamente, “Casos do Beco das Sardinheiras”, de Maio de 1982, que contou com nove edições até ser republicado com a chancela da Porto Editora em Novembro de 2013. Nele, o autor volta a brindar-nos com um livro de contos, verdadeiro “porto de abrigo” ao qual regressará de forma recorrente naquilo que leva de vida literária, sendo disso exemplo os muito recentes “Burgueses Somos Nós Todos ou Ainda Menos”, “O que Eu Ouvi na Barricas das Maçãs” e “Epítome de Pecados e Tentações”.

No vulgaríssimo Beco das Sardinheiras, “um beco como outro qualquer, encafuado na parte velha de Lisboa”, os casos são tudo menos vulgares. Nas suas casas velhas, de dois ou três andares, janelas de guilhotina, beirais avançados e um permanente cheiro a refogados ou a caracóis com orégãos, há um homem que é só busto, outro que engole a Lua, outro que fala mas não entende (ou entende mas não fala) e outro ainda, padre por sinal, com queda para os inventos. Há nuvens do tamanho de almofadas que não param de chover, máquinas de costura piores que congeladores, marcos do correio onde desembocam subterrâneos caminhos e pedras que só um catraio consegue mover. Há fados e facadas, moços lampeiríssimos pelos telhados, frascos de “amarelinha” nos coldres da pistola, gatos que crescem desmesuradamente e o que de mais escanifobético se possa imaginar.

Reunindo um conjunto de personagens verdadeiramente peculiares – do Virgolino Alpoim ao Zé Metade, do Zeca da Carris ao Quim Ambrósio -, Mário de Carvalho dá-nos um “cheirinho” de uma Lisboa em vias de extinção, de velhos sentados à porta em cadeiras de palhinha, mulheres a mexericar, padres a padralhar, polícias a policiar, cada qual a opinar, a lei do desenrascanço a prevalecer e no fim, todos amigos, vai um copo de três ou uma “amarelinha”, que a Marta Taberneira hoje está de generosidades. Com um apurado sentido do ritmo e um humor irresistível a piscar o olho à BD, “Casos do Beco das Sardinheiras” encanta pelo que faz sobressair de verdade no meio de tantas e tão fantásticas aventuras. O leitor vai encontrar neste livro alguns belos pretextos para uma boa gargalhada. Convém mas é não confundir género humano com Manuel Germano.

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