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quinta-feira, 19 de novembro de 2020

LIVRO: "Luuanda"



LIVRO: “Luuanda”,
de José Luandino Vieira
Ed. Editorial Caminho, Novembro de 2019 (4ª edição)


“Fechou os olhos com força, com as mãos, para não ver o que sabia, para não sentir, não pensar mais o corpo velho e curvado de vavó, chupado da vida e dos cacimbos, debaixo da chuva, remexendo com suas mãos secas e cheias de nós os caixotes de lixo dos bairros da Baixa. As laranjas quase todas podres, só ainda um bocado é que se aproveitava em cada uma e, o pior mesmo, aquelas mandiocas pequenas, encarnadas, vavó queria enganar, vavó queria lhes cozer para acabar com a lombriga a roer no estômago...”

Para se abarcar a verdadeira dimensão deste livro, teremos de recuar seis décadas, a um tempo em que José Luandino Vieira, em virtude da sua militância contra o regime de Salazar, cumpria catorze anos de pena nas cadeias da PIDE, os últimos dos quais no Campo da Morte do Tarrafal. É justamente aí que recebe, ainda que muito tardiamente, a notícia da atribuição a “Luuanda” do Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, à data presidida por Jacinto Prado Coelho. Esta “gaffe” política teve como consequência a proibição pela censura de qualquer referência ao prémio sem identificação do seu autor como “terrorista”, mas também o assalto e destruição da sede da SPE e a sua extinção por despacho datado de 21 de maio de 1965, o próprio dia em que os prémios foram revelados. Daí, em grande medida, o valor histórico e documental de um livro cujos méritos se estendem, igualmente, à sua originalidade e qualidade literária.

Dividido em três contos – “Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos”, “Estória do ladrão e do papagaio” e “Estória da galinha e do ovo” -, o livro propõe uma viagem pelos caóticos musseques, bairros periféricos de pau-a-pique que crescem em torno do núcleo urbano da capital angolana e se afiguram como uma ameaça à segurança e bem estar do branco. É aí que encontramos, entre “assimilados” e “mais velhos”, as  figuras incontornáveis de Vavó Xíxi e Zeca Santos, mas também de Lomelino dos Reis, Xico Futa, Inácia Domingas, o Kam’tuta, o auxiliar Zuzé, nga Zefa, nga Bina e demais personagens, uns e outros cativos da miséria, filhos do desenrascanço, peões de brega num jogo colonial levado ao extremo. Numa linha recuada, o opressor dirige e controla, impõe-se pela força e pelo medo, a polícia sempre presente, as cadeias sempre cheias, a raiva que nasce nos punhos e nos dentes de cada um cada vez maior.

Seguindo linhas narrativas clássicas, cada conto é uma ode à diversidade cultural e linguística de um país onde, segundo alguns autores, se falam 37 línguas e mais de meia centena de dialectos. Apostado num registo que pudesse reproduzir, de forma fiel, o linguajar corrente do angolano negro, o autor rompe com a norma portuguesa na literatura da antiga colónia e deixa-nos, a par com a “língua de prestígio”, deliciosos vocábulos como “monandengue”, “fanguista”, “quitata” ou “larar” e ainda um conjunto de expressões em quimbundo que conferem genuinidade e verdade aos textos. O resultado é deliciosamente surpreendente, o humor fino de Luandino Vieira a tirar partido do ser angolano no corpo e na alma, ao mesmo tempo que, de forma subtil, denuncia o racismo, a injustiça e as desigualdades que grassam em Angola e a transformam num barril de pólvora prestes a explodir.

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