LIVRO: “Livro de Vozes e Sombras”,
de João de Melo
Edição | Cecília Andrade
Ed. Publicações Dom Quixote, Junho de 2020
“Meses e meses depois, uma segunda palavra, também ela chamada Revolução, subiu à altura dos cones vulcânicos e das montanhas que tocam o céu do arquipélago, vinda em sentido contrário: nasceu no meio de nós e propagou-se de ilha para ilha, numa revoada saída dali para as vozes do mar. A nossa revolução pela independência dos Açores. Da noite para o dia, a sigla negra da FLA passou a escorrer da cal das paredes e dos muros da cidade.”
Cruzam-se, nesta história de uma jornalista que se desloca aos Açores com o intuito de preparar uma grande reportagem sobre os movimentos separatistas e o seu “Verão quente” no arquipélago, o antes e o depois de um Império que desaba em definitivo, as ondas convulsivas do estertor a tocarem as sete partidas do Mundo, para logo serem devolvidas num eco revolucionário onde se misturam o grito dos que tudo querem com o desespero dos que já nada têm. Da entrevista com um ex-operacional da Frente de Libertação dos Açores resultará uma mão cheia de nada. Mas as pistas que se abrem a partir dessa conversa, levar-nos-ão por caminhos imprevistos, fazendo de África e de Lisboa os dois restantes vértices de um doloroso triângulo.
Assente num “fait divers” bem definido geograficamente e com um tempo preciso, a narrativa adquire contornos de universalidade graças ao génio de João de Melo, um escritor que antes nos deu “O Meu Mundo Não É Deste Reino” ou “Gente Feliz Com Lágrimas” e que assina aqui um dos seus mais consistentes e sensíveis romances. Desenhado em seis sequências que culminam nessa Finisterra que é, simultaneamente, ponto de partida e de chegada de heróis e enjeitados, aventureiros e desvalidos, “Livro de Vozes e Sombras” é de uma sinceridade desarmante nos seus propósitos. No incontornável ajuste de contas com o passado, a uns caberá ultrapassá-lo, pacificados que estão consigo mesmos. Outros haverá, porém, que nunca abandonarão o estado de sítio e o recolher obrigatório, cada vez mais distantes da vontade, do bom nome e do respeito, reféns de uma vida para sempre perdida.
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