LIVRO: “O Teu Rosto Será o Último”,
de João Ricardo Pedro
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Leya, Março de 2012
“E, enquanto o outro se mirava ao espelho, o ilustre médico descobria, naquele homem vindo sabem Deus e o Diabo donde, talvez das margens do Guadiana pela forma de falar, naquele desgraçado que não tinha onde cair morto e que talvez por isso mesmo caíra ali, um inesperado reflexo de si próprio. É que, enquanto Celestino se mirava ao espelho, de sorriso estampado no rosto, e dizia ‘Oh, doutor, até parece que já vejo melhor’, não era porque, graças ao olho postiço, tivesse passado a ver melhor, mas porque a imagem que o espelho lhe devolvia se assemelhava à lembrança que tinha de si próprio. Era, por isso, uma ilusão. Uma ilusão que tinha, por um lado, a capacidade de lhe restituir a identidade mas, ao mesmo tempo, a capacidade de lha ocultar.”
O Celestino não viera almoçar. Na pequena aldeia com nome de mamífero, encalacrada num sopé da serra da Gardunha, Ressurreição, vizinha de Celestino, foi quem deu o alarme, acrescentando que a espingarda também desaparecera. Foram dar com ele à tardinha, num ermo sem dono, tombado no chão, coberto por uma nuvem de moscas, a cara crivada de chumbos. Àquela hora precisa, em Lisboa, o professor Marcello Caetano, depois de se render ao Movimento das Forças Armadas, saía do quartel do Carmo dentro de uma chaimite rumo ao exílio no Brasil. Assim começa “O Teu Rosto Será o Último”, nele se anunciando um caso de polícia, ao mesmo tempo que se insinuam as cores da revolução dos cravos. Daí que a surpresa do leitor será enorme ao perceber que o capítulo seguinte nada tem a ver com o anterior. Pela frente terá uma sucessão de contos praticamente independentes entre si, embora se perceba haver ali um fio condutor capaz de validar a estrutura do romance. Ou não.É com entusiasmo que nos agarramos às histórias que João Ricardo Pedro tão bem narra neste seu livro, dos trilhos minados no Norte de Angola, em plena Guerra de África, ao enorme salão do Museu de História de Arte, em Viena, onde se expõe “A Luta Entre o Carnaval e a Quaresma”, a obra-prima de Brueghel o Velho; de uma chegada em pelotão que permitiu ao Manuel Zeferino conservar a camisola amarela, a uma ida ao salão Playboy, a tesoura a bailar nas mãos de Alcino, o único barbeiro do mundo a proporcionar aos seus clientes a sensação de terem sobrevivido a um desastre. São, na verdade, deliciosas as peripécias que bebemos página após página, ora cómicas pela sua inverosimilhança, ora trágicas pela crueza e dureza na forma de narrar os factos. E todavia...
João Ricardo Pedro não quis fazer de “O Teu Rosto Será o Último” um livro de contos. Forçou uma linha narrativa coerente para nos oferecer um romance, mas fico na dúvida quanto ao resultado. Soçobro nesse esforço de detalhar os momentos mais significativos do livro em busca dos elos que possam dar corpo à grande história que nele teima em esconder-se. É nas pequenas histórias que encontro algum sentido, a dor e o amor como duas faces duma mesma moeda a que chamamos vida. O sofrimento moral e físico que se impõe na forma de um cancro em estado avançado, do napalm que se ergue da agitação do sono, da intolerável obrigação de fazermos o que de nós se espera, será o grande tema deste livro. Os pequenos nadas que povoam as nossas vidas e lhe colocam um pouco de colorido, o amor que se derrama de um gesto ou de um olhar, serve-lhe de contraponto. No final, é impossível disfarçar a sensação de frustração por um certo sabor a inacabado. Mas quantos livros tivemos a oportunidade de ler nos últimos tempos que nos convocassem tantas e tão boas histórias, tão gratas memórias, emoções tão delicadas, sensações tão intensas?
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