LIVRO: “Amália – Ditadura e Revolução”,
de Miguel Carvalho
Edição | Francisco Camacho
Ed. Publicações Dom Quixote, Junho de 2020
“Se alguma vez fez uns versinhos a Salazar foi porque se sentiu para aí virada, mas sem ideias preconcebidas, sem pensar em favores ou proteções a colher mais tarde. Olha quem, a Amália! Ela que é livre como o vento, que faz o que lhe dá na gana, que se apresenta tal e qual é, sem postiços, desprendida, tanto se lhe dá como se lhe deu, sem a menor intenção de tornar-se simpática ou antipática, sem querer saber se é a maior, porque a Amália é bem a expressão de um povo aqui nascido.”
Esta biografia de Amália Rodrigues poderá ter começado a ser pensada no dia 06 de Outubro de 1999 quando, numa reacção à morte da cantora, José Saramago afirmou em Paris: “A realidade é sempre mais complexa do que parece. (...) Essa mesma Amália que diz que era celebrada pelo salazarismo, algumas vezes fez chegar dinheiro através de pessoas, dinheiro que ela sabia que ia para o Partido Comunista Português, então na clandestinidade”. A afirmação do Prémio Nobel da Literatura caiu como uma bomba em certos círculos e Miguel Carvalho, jornalista da Revista Visão, viu aí uma oportunidade para tirar a limpo um conjunto de questões que ligavam a cantora ao antigo regime e levavam a que muitos continuassem a ver nela “a Princesa da PIDE”. O projecto de investigação estava em marcha, mas só em 2012 é que as coisas começam a ganhar forma. A colecção de recortes sobre a cantora faz engordar um particular dossier e o fascínio do jornalista por tão “estranha forma de vida” não cessa de crescer. Há dois anos, uma bolsa de investigação jornalística atribuída pela Fundação Calouste Gulbenkian oferece a Miguel Carvalho, finalmente, as condições para se abalançar numa narrativa de longo alcance. O resultado é esta extraordinária biografia, publicada no ano do centenário do nascimento de Amália.É crível que Miguel Carvalho se preparasse para subir uma colina e lhe surgisse uma montanha pela frente. Agora que começou a caminhada, avança destemido, não há como recuar. Entusiasma-se? Claro que se entusiasma. Perante o fascínio de uma vida que se mete por dentro de nós qualquer um se entusiasmaria. Os primeiros capítulos denotam algum excesso e não é fácil ao leitor adaptar-se à escrita musculada deste livro. Imagine-se um documentário em que cada desenvolvimento é corroborado pelas declarações de inúmeras entidades, surgidas ininterruptamente, à esquerda ou à direita do ecrã. Os factos são muitos, as impressões também. Miguel Carvalho não perde o fio à meada mas torna-se difícil acompanhá-lo. Não raramente, o leitor sente a necessidade de recuar uma ou mais páginas para se reposicionar. Importa não perder de vista quem é quem, juntar as pontas, entender os caminhos trilhados, as companhias “às claras”, os vultos que deslizam nas sombras. Mas se a primeira parte do livro chega a ser um desafio à resiliência do leitor, a segunda metade “é uma fervurinha”. A leitura torna-se absorvente, empolgante, o livro devora-se freneticamente. Terá o autor enveredado por uma maior contenção ou será uma questão de adaptação do leitor ao estilo de escrita? (Ou será que o 25 de Abril, marca intangível de um antes e um depois na vida de todos nós, tem alguma coisa a ver com isto?)
A escrita deste “Amália – Ditadura e Revolução” não espelha na íntegra a quantidade de material recolhido, das entrevistas, testemunhos e depoimentos à bibliografia consultada e aos arquivos vasculhados. Mas é uma bela súmula e oferece um vislumbre suficientemente claro sobre o trabalho que se abriga por detrás de quase seiscentas páginas, obrigando-nos a admirá-lo e a saudá-lo efusivamente. Amália é uma mulher indomável, insubmissa, um coração independente e Miguel Carvalho dá nota disso em passagens que se sucedem e nos espantam. Que nos cativam e emocionam. Interessado na mulher e nas circunstâncias políticas que viveu, dá conta de como atravessou dois regimes, vencendo “invejas artísticas e preconceitos ideológicos”, de como “sobreviveu a silenciamentos, calúnias e ataques, e até mesmo à sua morte antecipada – e do próprio fado –, tantas vezes proclamada.” Ao mesmo tempo narra a história de um país e de uma sociedade à luz do Estado Novo, da revolução e da construção democrática, revelando histórias de muitos daqueles que com ela se cruzaram, alguns dos quais não saem propriamente bem da fotografia.
No final, fica-me da obra a descoberta de que sabia muito pouco do “mito” e ainda menos da mulher que foi Amália. Não por preconceito, quem sabe por distração. Daí que o virar de cada página de “Amália – Ditadura e Revolução” fosse feito com a avidez de quem penetra num lugar misterioso e, entre o perplexo e o maravilhado, vai desvendando um a um os seus segredos. E, de repente, dou comigo a querer mais, a procurar mais. Abre-se o Youtube e busca-se o “Barco Negro”, um dos maiores êxitos de Amália, a beleza da voz a exaltar a música e o poema. Com o corpo num embalo bom, vai-se à procura de outras versões. Lá está Mariza, claro, mas também a batida rock dos Amor Electro. Lá está um tropicalíssimo Ney Matogrosso, mas também a catalã Sílvia Perez Cruz. Lá está, belo e profundo, arrepiante, o tema no piano de Júlio Resende. E o mesmo poderia dizer de “Foi Deus”, “A Canção do Mar”, “Povo Que Lavas No Rio” e tantas outras. Viajar ao encontro de Amália, das suas qualidades artísticas mas também humanas, da sua bondade e generosidade, da sua firmeza de carácter, é aquilo que o leitor poderá esperar deste livro. “E La Nave Va”.
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