VISITA GUIADA E ENCENADA: “Confidências de ACAFEM”
Dramaturgia e encenação | Leandro Ribeiro,
a partir de textos de Egas Moniz e cartas da comunidade
Interpretação | Leandro Ribeiro, Clara Oliveira, Liliana Elsig
Design e figurinos | Marta Baldaia
Fotografias de cena | Manuel Vitoriano
Produção | Sol d’Alma – Associação de Teatro
Organização e promoção | Câmara Municipal de Estarreja
Casa Museu Egas Moniz
04 Set 2020 | sex | 18:45
“Domingo, dia de missa. Num terreno perto da Igreja Matriz, pertença dos meus avós, onde passa o rio, iremos molhar os pés e a roupa na água corrente e cristalina. Iremos de carro de bois. Cuidarei para que tenhas um cantinho onde estender a manta, pousar a cesta do lanche e o resto é cá comigo. Seguir a água até ao moinho. P.S. Como recompensa ainda te compro uma chicla na loja da senhora Amália. Assinado R.M.”
É no espaço idílico da Casa e Quinta do Marinheiro, em Avanca, que “Confidências de ACAFEM” tem lugar. Produzido pela Sol d’Alma – Associação de Teatro, com dramaturgia e encenação de Leandro Ribeiro, o espectáculo começa por ser uma visita guiada àquela que é hoje a Casa Museu Egas Moniz. Ainda que em domínios da comédia, os momentos iniciais permitem apreciar, desde logo, a justeza do texto, rico em pormenores na apresentação do espaço e na contextualização das vivências, mas também a forma inteligente como sabe estabelecer uma forte empatia com o público, agarrando-o desde o primeiro minuto e levando-o pela mão, ao encontro das histórias que se abrigam num espaço pleno de significado e que Egas Moniz tão bem descreve em “A Nossa Casa”, livro publicado em 1950. É precisamente esse tempo da infância, feito de traquinices e jogos de canastra, trabalhos no campo e carros de bois, banhos na Torreira e aventuras no Rio Gonde, que nos é dado conhecer, tudo isto narrado pelo serviçal Romão, “a quem Deus não estendeu a mão; pelo contrário, tirou-lhe um olho e agora chamam-lhe zarolho.”
Deixemos Romão e, adentrando a casa pela porta da cozinha, entreguemo-nos aos cuidados da criada Gracinda que, não sendo zarolha, tem igualmente uma língua afiada e fala pelos cotovelos, num vozeirão de meter qualquer um em sentido. Sobretudo, Romão, que “em casa de pobre, é comer pouco e andar a nove”. É ela que, à revelia dos patrões, entre intrigas e inconfidências, nos conduz através das memórias que a casa encerra, começando pelo espaço onde encontraremos a “medalha do Prémio Nobel do Senhor Doutor” (e, já agora, um belíssimo desenho de Júlio Pomar). Na sala de jantar, entre louças de Cantão, mobília holandesa e pinturas flamengas, teremos um vislumbre de um almoço de família, “em que o patrão se sentava na testeira norte, à sua frente a esposa, do lado direito o menino Miguel e o menino António e, do outro lado, a Lucianinha”. Foi justamente neste aposento de proporções generosas, outrora “um quarto onde hoje é a sala”, que nasceu o Professor Egas Moniz. Mas quando as janelas se abrem para o jardim, o sol de fim de tarde enchendo de cores quentes uma paisagem idílica, é a memória de Luciana, a irmã mais velha, que se impõe, ressonâncias de Régio e Pessoa em fundo, Liliana Elsig esplendorosa de graça e beleza num quadro de uma harmonia infinda.
Continuamos a visita e, ante os nossos olhos, vão desfilando porcelanas orientais, lustres de cristal de Veneza, quadros do século XVIII da escola romântica francesa, mobília riquíssima D. José (“ou D. João V, ou quê...”), jarras de cinco dedos da fábrica do Fojo, mesas de jogo, contadores árabes com incrustações de marfim e, “last but not least”, o avental de Gracinda, que é dela “e é do tempo da Maria Cachucha”. Na biblioteca, mais de 1400 obras, quase todas elas primeiras edições assinadas pelos respectivos autores, tomam conta do nosso olhar. Lá estão todos os clássicos, portugueses e estrangeiros, nomeadamente Shakespeare, “original e em tradução francesa”, e a obra completa do preferido do cientista, o romancista Júlio Dinis. Só não nos é dado a ver a correspondência científica, porque essa, “a Directora do Museu, Dra. Rosa Maria, não deixa”. Na contígua sala dos retratos, partiremos à descoberta da origem do nome do Professor Egas Moniz, esse enigmático ACAFEM: António, do avó paterno, militar; Caetano, do seu tio e padrinho, abade; Abreu Freire, do pai, Fernando Resende de Abreu Freire; finalmente o Egas Moniz, pomposo e sonante, da linhagem dos Resendes, um aio de D. Afonso Henriques. Portanto, António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz, o nosso ACAFEM.
Cabe aqui um parêntesis para falar de um conjunto de cartas que vão sendo lidas ao longo da visita, em particular na escadaria de acesso ao piso superior, proporcionando momentos de pantomina deveras divertidos. Estas cartas são parte da correspondência estabelecida entre os produtores do espectáculo e a comunidade estarrejense, tendo como ponto de partida “uma carta anónima relatando inconfidências de um tal de ACAFEM, dizendo-se saudoso pelos tempos de infância e enaltecendo Avanca, a sua terra natal.” A carta, endereçada a 175 destinatários diferentes, recebeu um número reduzido de respostas, ainda assim as suficientes para criar ligações com os correspondentes, gerar novas emoções e, não menos importante, transformar-se então em dramaturgia para a criação artística deste modelo de visita guiada e encenada que teve o mérito de aliar o rigor histórico a um conjunto de momentos ficcionados impregnados de poesia. Metendo “o carro à frente dos bois”, acrescentaria que o trio de actores – Leandro Ribeiro, Clara Oliveira e Liliana Elsig – se mostram irrepreensíveis nos seus papéis, tocantes de entrega e de verdade, mas sobretudo de respeito por esta casa e pelas pessoas que a habitaram, muito especialmente o Professor Egas Moniz. Mas subamos ao andar de cima para um último e decisivo acto.
No “hall” de acesso aos quartos vamos encontrar Deolinda Fonseca, Enfermeira-Chefe da recém-criada Clínica Neurológica do Hospital de Santa Marta, assistente do Professor Egas Moniz e uma das raríssimas conhecedoras do facto de o Professor ter por prática comum a decapitação de cadáveres, num processo de investigação científica que o levou a desenvolver a angiografia cerebral e, mais tarde, a inventar a leucotomia pré-frontal, percursora da psicocirurgia, que lhe viria a valer o Nobel da Medicina em 1949. É precisamente a Enfermeira Deolinda que, na presença de Gabriel Coedegal de Oliveira Santos, natural de Ovar e residente em Coimbra, engenheiro silvicultor na repartição dos Serviços Florestais, nos faz recuar ao dia 14 de Março de 1939, uma terça feira, quando este último entrou no consultório do Professor Egas Moniz, à Rua do Alecrim, em Lisboa, despejando no corpo do cientista toda a carga da sua pistola automática e atingindo-o por seis vezes. Egas Moniz escaparia milagrosamente com vida, mas a sua actividade académica e científica acabaria ali, recolhendo-se à Casa do Marinheiro, onde passaria os seus últimos dias.
Leandro Ribeiro, Clara Oliveira e Liliana Elsig conseguiram, com este espectáculo, recuperar evocações que, nesta casa, surgem de todos os lados. Que não se veem mas que, como o perfume das rosas, se sentem, “mesmo de noite, quando já não há olhos para ver”. Nos gestos e na voz, deram existência às recordações do passado, nas pessoas dessa frágil Lucianinha, na sua mãe, no irmão Egas Moniz e na sua esposa, D. Elvira, nos criados, nesta Casa do Marinheiro, no rio e no jardim. Conseguiram exteriorizá-las, dar-lhes forma, reuni-las em assembleia. Conseguiram, de forma sublime, representar o último acto daquilo que deve ser visto como uma exposição. E, no final, cederem a palavra ao próprio Egas Moniz, recordando-nos ser esta casa “um templo de família, onde murmuram orações e confidências”. Ontem, como hoje. O espectáculo repete do próximo dia 27 de Setembro, mas é importante que se despache a reservar o seu ingresso, visto estar praticamente esgotado. Haverá uma nova récita em Novembro, por isso fique atento. É que “Confidências de ACAFEM” é mesmo, mas mesmo, a não perder!
[Foto de Manuel Vitoriano, gentilmente cedida por Clara Oliveira]
Dramaturgia e encenação | Leandro Ribeiro,
a partir de textos de Egas Moniz e cartas da comunidade
Interpretação | Leandro Ribeiro, Clara Oliveira, Liliana Elsig
Design e figurinos | Marta Baldaia
Fotografias de cena | Manuel Vitoriano
Produção | Sol d’Alma – Associação de Teatro
Organização e promoção | Câmara Municipal de Estarreja
Casa Museu Egas Moniz
04 Set 2020 | sex | 18:45
“Domingo, dia de missa. Num terreno perto da Igreja Matriz, pertença dos meus avós, onde passa o rio, iremos molhar os pés e a roupa na água corrente e cristalina. Iremos de carro de bois. Cuidarei para que tenhas um cantinho onde estender a manta, pousar a cesta do lanche e o resto é cá comigo. Seguir a água até ao moinho. P.S. Como recompensa ainda te compro uma chicla na loja da senhora Amália. Assinado R.M.”
É no espaço idílico da Casa e Quinta do Marinheiro, em Avanca, que “Confidências de ACAFEM” tem lugar. Produzido pela Sol d’Alma – Associação de Teatro, com dramaturgia e encenação de Leandro Ribeiro, o espectáculo começa por ser uma visita guiada àquela que é hoje a Casa Museu Egas Moniz. Ainda que em domínios da comédia, os momentos iniciais permitem apreciar, desde logo, a justeza do texto, rico em pormenores na apresentação do espaço e na contextualização das vivências, mas também a forma inteligente como sabe estabelecer uma forte empatia com o público, agarrando-o desde o primeiro minuto e levando-o pela mão, ao encontro das histórias que se abrigam num espaço pleno de significado e que Egas Moniz tão bem descreve em “A Nossa Casa”, livro publicado em 1950. É precisamente esse tempo da infância, feito de traquinices e jogos de canastra, trabalhos no campo e carros de bois, banhos na Torreira e aventuras no Rio Gonde, que nos é dado conhecer, tudo isto narrado pelo serviçal Romão, “a quem Deus não estendeu a mão; pelo contrário, tirou-lhe um olho e agora chamam-lhe zarolho.”
Deixemos Romão e, adentrando a casa pela porta da cozinha, entreguemo-nos aos cuidados da criada Gracinda que, não sendo zarolha, tem igualmente uma língua afiada e fala pelos cotovelos, num vozeirão de meter qualquer um em sentido. Sobretudo, Romão, que “em casa de pobre, é comer pouco e andar a nove”. É ela que, à revelia dos patrões, entre intrigas e inconfidências, nos conduz através das memórias que a casa encerra, começando pelo espaço onde encontraremos a “medalha do Prémio Nobel do Senhor Doutor” (e, já agora, um belíssimo desenho de Júlio Pomar). Na sala de jantar, entre louças de Cantão, mobília holandesa e pinturas flamengas, teremos um vislumbre de um almoço de família, “em que o patrão se sentava na testeira norte, à sua frente a esposa, do lado direito o menino Miguel e o menino António e, do outro lado, a Lucianinha”. Foi justamente neste aposento de proporções generosas, outrora “um quarto onde hoje é a sala”, que nasceu o Professor Egas Moniz. Mas quando as janelas se abrem para o jardim, o sol de fim de tarde enchendo de cores quentes uma paisagem idílica, é a memória de Luciana, a irmã mais velha, que se impõe, ressonâncias de Régio e Pessoa em fundo, Liliana Elsig esplendorosa de graça e beleza num quadro de uma harmonia infinda.
Continuamos a visita e, ante os nossos olhos, vão desfilando porcelanas orientais, lustres de cristal de Veneza, quadros do século XVIII da escola romântica francesa, mobília riquíssima D. José (“ou D. João V, ou quê...”), jarras de cinco dedos da fábrica do Fojo, mesas de jogo, contadores árabes com incrustações de marfim e, “last but not least”, o avental de Gracinda, que é dela “e é do tempo da Maria Cachucha”. Na biblioteca, mais de 1400 obras, quase todas elas primeiras edições assinadas pelos respectivos autores, tomam conta do nosso olhar. Lá estão todos os clássicos, portugueses e estrangeiros, nomeadamente Shakespeare, “original e em tradução francesa”, e a obra completa do preferido do cientista, o romancista Júlio Dinis. Só não nos é dado a ver a correspondência científica, porque essa, “a Directora do Museu, Dra. Rosa Maria, não deixa”. Na contígua sala dos retratos, partiremos à descoberta da origem do nome do Professor Egas Moniz, esse enigmático ACAFEM: António, do avó paterno, militar; Caetano, do seu tio e padrinho, abade; Abreu Freire, do pai, Fernando Resende de Abreu Freire; finalmente o Egas Moniz, pomposo e sonante, da linhagem dos Resendes, um aio de D. Afonso Henriques. Portanto, António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz, o nosso ACAFEM.
Cabe aqui um parêntesis para falar de um conjunto de cartas que vão sendo lidas ao longo da visita, em particular na escadaria de acesso ao piso superior, proporcionando momentos de pantomina deveras divertidos. Estas cartas são parte da correspondência estabelecida entre os produtores do espectáculo e a comunidade estarrejense, tendo como ponto de partida “uma carta anónima relatando inconfidências de um tal de ACAFEM, dizendo-se saudoso pelos tempos de infância e enaltecendo Avanca, a sua terra natal.” A carta, endereçada a 175 destinatários diferentes, recebeu um número reduzido de respostas, ainda assim as suficientes para criar ligações com os correspondentes, gerar novas emoções e, não menos importante, transformar-se então em dramaturgia para a criação artística deste modelo de visita guiada e encenada que teve o mérito de aliar o rigor histórico a um conjunto de momentos ficcionados impregnados de poesia. Metendo “o carro à frente dos bois”, acrescentaria que o trio de actores – Leandro Ribeiro, Clara Oliveira e Liliana Elsig – se mostram irrepreensíveis nos seus papéis, tocantes de entrega e de verdade, mas sobretudo de respeito por esta casa e pelas pessoas que a habitaram, muito especialmente o Professor Egas Moniz. Mas subamos ao andar de cima para um último e decisivo acto.
No “hall” de acesso aos quartos vamos encontrar Deolinda Fonseca, Enfermeira-Chefe da recém-criada Clínica Neurológica do Hospital de Santa Marta, assistente do Professor Egas Moniz e uma das raríssimas conhecedoras do facto de o Professor ter por prática comum a decapitação de cadáveres, num processo de investigação científica que o levou a desenvolver a angiografia cerebral e, mais tarde, a inventar a leucotomia pré-frontal, percursora da psicocirurgia, que lhe viria a valer o Nobel da Medicina em 1949. É precisamente a Enfermeira Deolinda que, na presença de Gabriel Coedegal de Oliveira Santos, natural de Ovar e residente em Coimbra, engenheiro silvicultor na repartição dos Serviços Florestais, nos faz recuar ao dia 14 de Março de 1939, uma terça feira, quando este último entrou no consultório do Professor Egas Moniz, à Rua do Alecrim, em Lisboa, despejando no corpo do cientista toda a carga da sua pistola automática e atingindo-o por seis vezes. Egas Moniz escaparia milagrosamente com vida, mas a sua actividade académica e científica acabaria ali, recolhendo-se à Casa do Marinheiro, onde passaria os seus últimos dias.
Leandro Ribeiro, Clara Oliveira e Liliana Elsig conseguiram, com este espectáculo, recuperar evocações que, nesta casa, surgem de todos os lados. Que não se veem mas que, como o perfume das rosas, se sentem, “mesmo de noite, quando já não há olhos para ver”. Nos gestos e na voz, deram existência às recordações do passado, nas pessoas dessa frágil Lucianinha, na sua mãe, no irmão Egas Moniz e na sua esposa, D. Elvira, nos criados, nesta Casa do Marinheiro, no rio e no jardim. Conseguiram exteriorizá-las, dar-lhes forma, reuni-las em assembleia. Conseguiram, de forma sublime, representar o último acto daquilo que deve ser visto como uma exposição. E, no final, cederem a palavra ao próprio Egas Moniz, recordando-nos ser esta casa “um templo de família, onde murmuram orações e confidências”. Ontem, como hoje. O espectáculo repete do próximo dia 27 de Setembro, mas é importante que se despache a reservar o seu ingresso, visto estar praticamente esgotado. Haverá uma nova récita em Novembro, por isso fique atento. É que “Confidências de ACAFEM” é mesmo, mas mesmo, a não perder!
[Foto de Manuel Vitoriano, gentilmente cedida por Clara Oliveira]
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