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terça-feira, 9 de junho de 2020

LIVRO: "Uma Outra Voz"



LIVRO: “Uma Outra Voz”, 
de Gabriela Ruivo Trindade 
Edição | Maria do Rosário Pedreira 
Ed. Leya, Abril de 2014


“Saiu batendo com a porta, e eu, senhora, toda eu tremia, deixei-me cair em cima da cama e pela primeira vez, pela única vez, minha mãe, tive de cerrar os dentes com muita força para não me levantar e ir atrás dele dizer-lhe as palavras que me martelavam dentro do peito, sim, sim, sim, meu amor, quero casar-me contigo, é tudo o que quero nesta vida, meu amor, minha alma. Fartei-me de chorar, mas depois engoli as lágrimas e as palavras, as mesmas que ainda aqui guardo dentro de mim e são o que mais me pesa agora, na hora de morrer, porque nunca lhas disse. Não tive coragem.”


Não sei quanto tempo passou, mas estaremos a falar de três, quatro anos. Da leitura inicial de “Uma Outra Voz” tinham ficado as memórias de uma escrita cuidada e visualmente muito rica sobre o passado de uma família na pacatez de uma cidade Alentejana. Tinham ficado também as várias vozes que, em tempos diferentes, ofereciam uma multiplicidade de olhares sobre uma só paisagem, o real e a ficção amarrados num só. Finalmente, tinha ficado a certeza de que haveria de voltar a este livro, com outro conhecimento e outra disponibilidade, que isto de ler é ofício que cresce e se aprende. A oportunidade surgiu agora, como um desejo forte, uma quase necessidade, a percepção de que a grande história em torno da figura tutelar de João Francisco Carreço Simões (Ti Carreço) se revelaria mais viva e pujante, a convicção de que as pequenas histórias se imporiam com uma força e uma riqueza que não lhes adivinhara antes.

Começando por estas últimas, nelas descobrimos, desde logo, uma homenagem sincera e sentida a Estremoz, cidade da qual são oriundos os pais da autora e onde vive, ainda, grande parte da sua numerosa família. O Café Alentejano ou o Águias d’Ouro, o Teatro Bernardim Ribeiro, a Papelaria Tabaqueira ou a Filarmónica Artística Estremocense não são aqui meros ecos do passado. Atravessaram fomes e farturas, monarquias e repúblicas, ditaduras e revoluções, preservando uma aura que os eleva à categoria de símbolos, marcas vivas de uma cidade que se faz presente neste livro. A grande literatura insinua-se também nas pequenas histórias, quer fazendo de Sebastião da Gama uma das personagens do livro ao evocar a sua passagem pela Escola Industrial de Estremoz onde leccionou Português, quer nos breves apontamentos que remetem para a poesia de Álvaro de Campos ou de Cecília Meireles, quer ainda na forma como faz da Livraria Ulmeiro (e do Zé Ribeiro) um farol na longa noite do fascismo.

Finalmente a grande história, rematada em forma de diário pelo próprio João Francisco Carreço Simões, durante o seu exílio voluntário em Angola, nos alvores do Estado Novo. Escritas com o coração, as várias entradas respondem ao momento alto do livro, a “quinta e última voz”, a dessa mulher que nunca foi menina, corpo que a todos se deu, cabeça e coração em lados opostos, lágrimas de fel bebidas por um amor que nunca se permitiu inteiro e pleno. Numa escrita expressiva, feita de emoção e arrebatamento, Gabriela Ruivo Trindade faz-nos regressar à grande literatura romântica, levando-nos a recuperar o prazer sentido nas palavras de Garrett, Camilo ou Júlio Dinis. Importa dizer que o livro não é todo ele assim, absorvente e belo – sobretudo a “terceira voz”, a de Jorge Falcato, parece “fora da caixa” face ao conjunto de vozes que aqui se escutam -, mas as palavras que os dois amantes se dirigem e que ocupam o último terço do livro valem pelo todo.

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