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domingo, 10 de maio de 2020

LIVRO: "A Outra Margem do Mar"



LIVRO: “A Outra Margem do Mar”, 

de António Lobo Antunes 
Edição | Maria da Piedade Ferreira 
Ed. Publicações Dom Quixote, Setembro de 2019 


Quem ler António Lobo Antunes pela primeira vez, sentir-se-á, porventura, atraído por um estilo de escrita invulgar e que desperta sentimentos de uma profunda admiração. É deveras fascinante a forma como o autor se mostra capaz de pegar numa história e de a contar numa perspectiva vincadamente pessoal, a narrativa tornada amálgama de emoções, as coisas, os lugares e as pessoas reféns de uma lógica circular onde passado e presente se misturam e confundem. Porém, para todos os outros a quem o universo de Lobo Antunes não é alheio, “A Outra Margem do Mar” traz com ele um gosto a comida requentada, so(m)bras da véspera que perderam o vigor, o sabor e a novidade, que a custo se levam à boca, se mastigam e engolem. 

“A Outra Margem do Mar” é o regresso do autor a Angola, fazendo incidir o seu olhar sobre o 4 de Janeiro de 1961 e o massacre da Baixa de Cassanje, momento crucial na afirmação do nacionalismo angolano moderno e momento zero da chamada Guerra do Ultramar. Resultando na chacina de centenas de trabalhadores negros daquela região algodoeira pelas forças armadas de Portugal, potência colonizadora à data, este episódio precedeu a ameaça de um desembarque do paquete “Santa Maria”, desviado por oposicionistas chefiados pelo capitão Henrique Galvão, os sangrentos assaltos às prisões, Casa de Reclusão e Esquadra da P.S.P de Luanda e, logo de seguida, os ataques perpetrados pela U.P.A. no Norte de Angola. 

Com engenho e minúcia, o autor eleva à figura de protagonistas, a par do vento e da vastidão da paisagem, um militar de alta patente e um proprietário agrícola, ambos oriundos “da outra margem do mar”. À sua volta, sob o olhar atento de dezassete gaivotas pousadas no telhado de um armazém, gravitam um conjunto de personagens, dos superiores hierárquicos aos guerrilheiros, dos familiares directos às “damas de companhia”, peças solitárias numa deriva sem rumo nem fim à vista, peões de um jogo sem regras que vão caindo um após outro. Neste recuperar de memórias reside o grande mérito do livro. No demais, “nada diz, nada acrescenta, nem mexe o fundo à panela.”

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