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domingo, 24 de maio de 2020

LIVRO: "O Último Cabalista de Lisboa"



LIVRO: “O Último Cabalista de Lisboa”, 
de Richard Zimler 
Ed. Porto Editora, Outubro de 2013


“Reconheci a senhora Telo, a costureira, deitada de costas debaixo do fresco da Anunciação que enfeita o transepto. Tinha o rosto branco de cera e os olhos fechados. Sem sangue. Nenhum. Sobre o ombro, pendia-lhe o apito de lata com que costumava chamar os filhos. Voltei-me ao ouvir rosnar. Era um rafeiro de focinho rosado com as patas na barriga de um homem que tinha o peito empapado num líquido escuro. Com as orelhas esticadas, levantava os beiços latejantes e encrostados, deixando à mostra os colmilhos afiados; fazia ouvir um ronco que lhe nascia das tripas, como se temesse que lhe disputasse o cadáver.”

Concluída a leitura de “O Última Cabalista de Lisboa”, acode à ideia a sensação de que Richard Zimler ficou aquém do tom certo para este seu livro. Fixando-se algures entre o romance histórico e o policial, o autor parece ter descurado duas palavrinhas muito simples mas tremendamente importantes em obras deste género: Ritmo e economia. Entremear a intriga com uma profusão de apontamentos históricos e culturais não se revela uma boa aposta, sobretudo porque a variedade e a riqueza dos elementos que são oferecidos acaba por submergir, com frequência, a acção. Por outro lado, demasiadas personagens favorecem a dispersão e distraem o leitor do foco principal. Quem tiver lido “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, saberá do que falo. E, todavia, é impossível resistir ao fascínio de certas passagens deste romance.

Vistos como os grandes responsáveis pela fome e pela peste que grassava na cidade de Lisboa nesse início do Século XVI, os cristãos-novos foram vítimas de um movimento revoltoso instigado por padres dominicanos. Perseguidos, massacrados, torturados, mais de dois milhares de homens, mulheres e crianças foram atirados para as enormes fogueiras improvisadas que, durante três dias, se levantaram no Rossio, no que ficou conhecido como o “pogrom” de 1506. É neste cenário de horror que o autor situa o seu livro, debruçando-se sobre a morte de Abraão Zarco, o último cabalista de Lisboa, e convidando o leitor a acompanhar a minuciosa investigação levada a cabo por Berequias, seu sobrinho, tendente à descoberta dos culpados. Entre a evidência factual e os sinais que só a fé permite compreender, a sucessiva eliminação dos suspeitos vai-se fazendo por exclusão de partes, as vidas ocultas e os negócios menos lícitos a virem ao de cima e, com eles, o autor e o móbil do crime.

No desfiar desta teia de mistérios, sobressai a excelência da escrita de Richard Zimler. Há imagens que o livro convoca que são de uma enorme beleza e isso deve-se ao olhar sensível do autor e ao seu cuidado e delicadeza na hora de alinhar as palavras. Um surdo-mudo que vê com as mãos aquilo que os olhos dos outros não conseguem ver, o labirinto de becos e ruelas da Lisboa antiga, uma procissão de velas de flagelados ou o labor no momento de exorcizar um ibbur, encerram uma enorme riqueza visual e são fontes de prazer e deleite para o leitor. Talvez por isso se não perceba muito bem o porquê da insistência numa descrição caricatural dos cristãos-velhos – o cabelo sempre sujo, as expressões bovinas, os risos alarves a pontuar a borracheira permanente, as roupas e casas que tresandam a estrume – contrastando com a delicadeza de um pão de challa, a macieza de um lençol de linho, o cromatismo dos azulejos, o intenso aroma a especiarias ou os cânticos de louvor a Deus que se elevam da pequena Jerusalém. Mesmo assim, “O Último Cabalista de Lisboa” é um bom livro e merece a nossa atenção.

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