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segunda-feira, 4 de maio de 2020

ARTES LITERÁRIAS: Bode Inspiratório



ARTES LITERÁRIAS: Bode inspiratório 
Vários escritores e artistas plásticos 
facebook.com/bodeinspiratorio/


“Durante meses os pensamentos das pessoas estiveram essencialmente ocupados com o terror, evidenciando a sua incapacidade para se ajustar a um tempo em que nos foi interdito os gestos mais simples da humanidade. Os abraços foram proibidos, os beijos cancelados e o mundo foi fechado desde que o vírus se disseminou. Neste tempo em que permanecemos em casa, vivemos no interior de uma cela individual, na maior solidão. A mente de cada um recorria aos filtros possíveis para não desfalecer. A prisão deslocou-se das paredes e embrenhou-se na própria pele.”

É na adversidade que surgem as melhores ideias. Em tempos de pandemia, fazer dos sofás as suas trincheiras pareceu-lhes pouco. E assim, 46 escritores e outros tantos artistas plásticos juntaram-se para criar o Bode Inspiratório e presentear-nos, a cada dia, um novo capítulo daquele que constitui, indubitavelmente, um dos mais interessantes documentos dos tempos do isolamento social. Agora que nos aproximamos do final – o remate da “saga” está agendado para amanhã, Dia Mundial da Língua Portuguesa -, importa recuar no tempo, ao encontro do primeiro episódio desta espécie de “cadáver esquisito”. Nele, Mário de Carvalho lançava algumas das personagens que iriam marcar presença ao longo da série - Teresa, Lúcia, Ricardo, Cacilda -, situando a acção numa caverna, algures no subsolo, onde “uma centena, centena e meia de cientistas” procuravam a cura para um vírus que ameaçava a Humanidade. Chamou a esse capítulo “Raios e Coriscos”. Desde então, aconteceu de tudo um pouco.

Aqueles que acompanharam os vários episódios, seguindo a linha, tantas vezes errática e cheia de curvas, subidas a pique, arranques velozes, das diferentes narrativas, depararam-se com uma diversidade delirante de assuntos e estilos. Ana Bárbara Pedrosa fala de cibersexo, adiantando que “quem não tem um Ronaldo safa-se com um Messi”; Ana Saragoça vê a saudade como uma “armadilha”; Tiago Salazar agita a bandeira da liberdade, vendo nela “a solução para todo o mal”; Rita Ferro escreve que “ao tempo da indignação sucede o tempo da resignação”; e Álvaro Laborinho Lúcio diz ser o medo, “de novo, a arma do poder”. Aliás, o medo é um assunto recorrente: José Fanha fala dele como algo que “amarra o povo ao trabalho e às cavernas”, Hugo Gonçalves diz aí residir “o algoritmo da obediência e da lealdade”, Afonso Reis Cabral garante que “a rede instalou o software do medo no hardware da esperança” e Domingos Lobo interroga-se (e interroga-nos) se, “quando nos for possível voltar a beijar, será que o faremos sem medo?”. 

Há textos que surgem na linha dos anteriores e há textos que se evidenciam isoladamente. Há textos muito belos e outros que nem por isso. Há textos profundos – quase me apetece usar o termo “filosóficos” – e outros muito leves, quase brincalhões. Leia-se Cristina Carvalho, Valério Romão, Luís Filipe Castro Mendes, Afonso Cruz, Raquel Patriarca e Ana Luísa Amaral, por exemplo, e logo se perceberá o quão livre pode ser o pensamento, o quão rica (e enriquecedora) pode ser a literatura. De tal maneira rica que teríamos aqui “bode” para a noite inteira. Mas importa terminar, não sem antes deixar uma palavra de esperança às gerações vindouras: Embora confinados às cavernas, dentro de trinta anos poderemos continuar a deliciar-nos com uma garrafa de Papa Figos; que, apesar de ter acabado a cultura pop americana, o MIT terá uma sucursal portuguesa em Queluz de Baixo; que o verde continuará a ser sempre o último no campeonato (Rui Zink dixit); e que Zeca continuará vivo, a resistência fazendo-se ao som da “Utopia”. Dizer, enfim, que Adélia Carvalho, Filipa Leal e Norberto Morais assinam capítulos absolutamente imperdíveis e que Tiago Salazar e António Ladeira foram fantásticas descobertas. Mas é de Ricardo Fonseca Mota o texto que mais me preenche, um convite ao leitor a recuar no tempo, à destruição da Biblioteca de Alexandria, “a primeira pandemia da escuridão”, deixando-o com uma exortação: “Olha para trás e verás o futuro!”

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