LIVRO: “Logo À Tarde Vai Estar Frio”,
de António Canteiro
Edição | Guilherme Valente
Ed. Gradiva Publicações, Abril de 2016
“Há ovelhas tolhidas de nuvens em volta, um cão felpudo, espreguiçando-se nas nuvens em volta; mulheres, com xailes negros de nuvens em volta, têm na mão uma roca de fiar com novelos gigantes de nuvens em volta; e homens, espadaúdos, de cigarro ao canto dos lábios, que lançam fumaradas para as nuvens em volta, reparam na sombra as mãos crestadas, olham as redes de nuvens em volta, para lançar no mar e no céu...”
Concluída a leitura de “Logo À Tarde Vai Estar Frio”, sobra um sentimento contraditório, um doce amargo que é, ao mesmo tempo, satisfação e desconforto, desalento e júbilo. Publicado no ano anterior ao sublime “A Luz Vem das Pedras”, este livro é a afirmação da voz harmoniosa e sensível do autor, do seu dom natural de extrair beleza até das coisas mais simples, do seu talento em transformar pequenos nadas de delicada prosa em exaltantes poemas, guiando o leitor por caminhos do sonho e do prazer. Mas António Canteiro quis ir mais longe. Ambicionou mover mundos paralelos, encontrar-lhes semelhanças e diferenças, tomar o leitor pelo braço e convidá-lo a fazer com ele essa destrinça. O resultado não é feliz.
Estruturado em três capítulos, o livro encerra um sincero e sentido tributo ao poeta António Nobre, figura ímpar das letras em Portugal e, assumidamente, uma das mais fortes influências de António Canteiro. Prolongando, com este livro, o cariz encantatório da obra de António Nobre – da qual respiga breves trechos, que introduz com naturalidade na narrativa -, o autor percorre os meandros de uma vida tornada breve pela doença. Dos versos primeiros, “no adro, ainda, escritos na cal”, ao fim do sofrimento, a caminhar para a cova, para um “hotel de ossos”, acompanhamos o poeta no seu traje bizarro, eivado de melancolia, comovido com as sumarentas laranjas que, esmagadas em gotas, escorrem pelo muro, enojado com a vaidade dos estudantes de Coimbra, encerrado na Torre de Anto, escrevendo versos que são orações, caminhando entre as luzes de Paris, duzentas páginas escritas, dactilografadas, debaixo do braço, SÓ.
Um recuo no tempo situa o leitor na mesma Coimbra, com o mesmo amarelo-ocre das paredes, o mesmo enrugado dos paralelepípedos de granito no chão, a mesma decadência, a mesma inspiração. Tudo igual como há cem anos atrás, apenas um outro António. Com foros de epidemia, também a doença é outra. E aqui o livro perde-se, mas isto sou eu a dizê-lo, que talvez o tenha lido não da melhor maneira. O estilo muda e, com ele, a subtileza esvai-se. Deixa de ser possível comparar o incomparável. O capítulo final retoma o fio à meada, mas sobra essa espécie de mancha, que contamina e desfeia. Quero esquecê-la. Quero apenas guardar a imagem de mulheres esculpidas na calçada, de um menino deitado à sombra de seios e de lágrimas, dos gemidos do vento, dos rugidos do mar. Arremessar, à força de braços, uma concha redonda onde cabe a terra e o mar e acompanhá-la com os olhos até a ver mergulhar, enfim, exausta, na profundeza escura das águas. Sonhar com a praia e com uma onda galgando a areia e vindo aninhar-se ao meu lado...
Estruturado em três capítulos, o livro encerra um sincero e sentido tributo ao poeta António Nobre, figura ímpar das letras em Portugal e, assumidamente, uma das mais fortes influências de António Canteiro. Prolongando, com este livro, o cariz encantatório da obra de António Nobre – da qual respiga breves trechos, que introduz com naturalidade na narrativa -, o autor percorre os meandros de uma vida tornada breve pela doença. Dos versos primeiros, “no adro, ainda, escritos na cal”, ao fim do sofrimento, a caminhar para a cova, para um “hotel de ossos”, acompanhamos o poeta no seu traje bizarro, eivado de melancolia, comovido com as sumarentas laranjas que, esmagadas em gotas, escorrem pelo muro, enojado com a vaidade dos estudantes de Coimbra, encerrado na Torre de Anto, escrevendo versos que são orações, caminhando entre as luzes de Paris, duzentas páginas escritas, dactilografadas, debaixo do braço, SÓ.
Um recuo no tempo situa o leitor na mesma Coimbra, com o mesmo amarelo-ocre das paredes, o mesmo enrugado dos paralelepípedos de granito no chão, a mesma decadência, a mesma inspiração. Tudo igual como há cem anos atrás, apenas um outro António. Com foros de epidemia, também a doença é outra. E aqui o livro perde-se, mas isto sou eu a dizê-lo, que talvez o tenha lido não da melhor maneira. O estilo muda e, com ele, a subtileza esvai-se. Deixa de ser possível comparar o incomparável. O capítulo final retoma o fio à meada, mas sobra essa espécie de mancha, que contamina e desfeia. Quero esquecê-la. Quero apenas guardar a imagem de mulheres esculpidas na calçada, de um menino deitado à sombra de seios e de lágrimas, dos gemidos do vento, dos rugidos do mar. Arremessar, à força de braços, uma concha redonda onde cabe a terra e o mar e acompanhá-la com os olhos até a ver mergulhar, enfim, exausta, na profundeza escura das águas. Sonhar com a praia e com uma onda galgando a areia e vindo aninhar-se ao meu lado...
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