TERTÚLIA LITERÁRIA: João Tordo
Ponto de Luz – Pólo de Souto da Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira
07 Mar 2020 | sab | 21:30
O “Ponto de Luz”, Pólo de Souto da Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira, abriu as portas, na noite do passado sábado, ao escritor João Tordo, para uma conversa em torno do seu mais recente livro, “A Noite em que o Verão Acabou”. Com a sala cheia de gente ávida de conhecer o escritor e a sua obra, o serão encerrou momentos de enorme interesse, centrados sobretudo no ofício da escrita e naquilo que representa, tanto para quem escreve como para quem lê. “Ao contrário da generalidades dos ofícios, ser escritor não é coisa que se aprenda. Acordo todos os dias com a sensação de que não sei o que estou a fazer. Como tem uma margem infinita, também gera uma angústia infinita. Nesse sentido, é algo muito particular”, referiu o escritor. Mas qual a tradição literária que transformou o escritor naquilo que é hoje? Porque é que faz isto e não outra coisa qualquer? A resposta surge de forma livre: “Escrevo porque sinto necessidade de me fazer passar pelo processo de encontrar uma espécie de lugar que não seja a minha vida e no qual possa colocar o ‘pathos’, o meu sofrimento, as minhas aflições”, conclui.
Pegando nestas impressões, o escritor estabelece uma ponte com o tema seguinte no qual relaciona o útil com o conceito de criação artística. “Que relação temos com um livro que lemos e do qual gostamos, com uma peça de música que nos emociona ou com os objectos que nos causam o tal ‘pathos’ ”, interroga-se.“Se pensarmos nos séculos XVII ou XVIII, toda a educação de um jovem, por exemplo, era feita através do belo. O útil estava associado ao belo, à arte. Sobretudo a partir de meados do século XIX, com a Revolução Industrial, de repente o útil passa a estar associado às coisas que consideramos úteis, enquanto a arte passou para o domínio do inútil, o que leva hoje as pessoas a interrogar-me porque é que escrevo, a pergunta ganhando total legitimidade visto a escrita ser algo que não tem serventia”, disse. Tendo atrás de si todo um percurso ligado à escrita e que terá começado em criança, João Tordo falou de sua vida pessoal e do seu trabalho enquanto escritor, afirmando que “a literatura é algo que me enche a alma, com a qual tenho uma ligação completamente espiritual”.
Entrando no assunto que o trouxe a São Miguel do Souto, o autor desvendou um pedacinho da escrita de “A Noite em que o Verão Acabou”, começando por dizer que o livro é baseado, em grande parte, na sua adolescência e nas vivências em família nesse particular período. “Queria muito escrever sobre esses tempos de férias que passava no Algarve. O Verão era exactamente assim, com todas aquelas características dos anos 80, quando toda a gente ia para os mesmos lugares, todos víamos a Fórmula 1 e o Ténis colados ao televisor, a forma como se estava na praia com a avó a descascar fruta para os netos... e essas referências estão lá todas, são coisas das quais me lembro muito bem. Inspirei-me muito nisso porque queria escrever acerca desse tempo, mas queria escrever também acerca de uma coisa que eu acho que é muito engraçada que são os amores de Verão”, adiantou.
Depois de referir algumas curiosidades – a origem do nome “Lagoeiro”, uma terra que não existe e cujo nome surge da junção do nome de duas terras algarvias, o nome da avó e da tia-avó, respectivamente Eduarda e Alexandrina, no livro tal como na vida real, ou o local onde decorre parte da acção, Chatlam, aqui uma ligeira alteração no nome de uma cidade americana que existe na realidade -, João Tordo frisa que, tal como ele, também este Pedro Taborda, a personagem principal do livro, decide ir estudar para os Estados Unidos, em busca dos autores que mais admirava. Mas o facto de este ser um livro que nasce de experiências muito concretas, não significa que seja assim com todos os seus livros: “Já escrevi livros que nascem de experiências muito tolas, que não têm nada de profundo e muito menos de literário”, dando como exemplo “O Paraíso Segundo Lars D.”, inspirado num evento que teve como ponto de partida a instalação de uma aplicação no seu iPhone pelo irmão mais novo e que facilitava encontros entre pessoas. “De repente percebi que as mulheres disponíveis à minha volta tinham todas para cima de 60 anos”, disse, provocando a gargalhada geral na sala.
Aberta às questões do público, a segunda parte desta tertúlia trouxe mais um belo punhado de momentos. Entre outros assuntos, falou-se dos tempos da escrita – “começo por um rascunho, durante quatro ou cinco meses, mas que ‘é barro ainda por moldar’, depois deixo repousar antes de começar a ‘moldar’, a reescrever uma e outra vez, até alcançar o resultado desejado, ao fim de um ano ou mais” -, mas também da importância da contenção no processo – “gosto cada vez mais de contenção, acho que o que quero dizer pode ser dito, normalmente, com menos palavras” – e até da necessidade de mentir, esse lugar onde nascem todas as histórias, necessidade essa que, neste livro, se estende aos agradecimentos. Antes ainda do último acto – o autografar dos livros, “sem apertos de mão e sem beijinhos, por causa do coronavírus” – tempo ainda para uma reflexão, em resposta à última questão. Socorrendo-se de uma passagem do livro “Do Que Eu Falo Quando Eu Falo de Corrida”, de Haruki Murakami, João Tordo estabelece a diferença entre “um tipo normal” e um escritor: “Dois homens chegam ao sopé do Monte Fuji. O homem ‘normal’ olha em volta e mostra-se satisfeito com a vista, considera o momento épico, glorioso, regressando em seguida a casa. Por seu lado, o escritor é o tipo que não se mostra convencido e começa a subir a montanha”.
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