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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

LIVRO: "A Vida Sonhada das Boas Esposas"



LIVRO: “A Vida Sonhada das Boas Esposas”,
de Possidónio Cachapa
Ed. Companhia das Letras, Novembro de 2019


“Só depois zarparam, em direcção ao mar alto, a pedido de Ramón, que queria ter um momento de intimidade com aquela a quem agora poderia chamar 'sua mulher'. E o comandante do navio, que o conhecia desde menino, sorriu e mudou a rota na direcção em que o Sol começava a pôr-se.”

É quando se vê a braços com uma viuvez não antecipada, que Madalena percebe que o defunto marido não seria merecedor, sequer, de uma milésima parte daquilo que ela lhe foi dando ao longo da vida. Os filhos, caprichosos e superficiais, subtraíram-lhe tempo e esperanças à medida que foram crescendo e, mais do que nunca, mostram-se agora indisponíveis para abdicar desta verdadeira “criada para todo o serviço”. Aos 66 anos, portanto, a mulher olha friamente para trás, percebendo que há muito pouco de seu num tempo que é já passado. Como um punhado de areia numa mão fechada, a vida escapa-se rapidamente e não há um minuto a perder se quiser ainda viver a verdadeira felicidade.

Depois de um primeiro contacto com Possidónio Cachapa, através desse extraordinário exercício de escrita que é “Eu Sou A Árvore”, sou de novo convidado a mergulhar no mais profundo da condição humana através de uma fábula dos tempos modernos onde os sonhos se tornam reais e as vidas, libertas das amarras cruéis do dever e das convenções, se entregam, em toda a liberdade, à plena fruição. Acompanhando uma linha narrativa apenas simples na aparência, o leitor mergulha na história de Madalena para descobrir que nunca é tarde para, nas asas de um sonho tornado real pela força do querer e pela coragem do ser, saborear um pôr-do-sol glorioso com alguém que nos estima ao nosso lado.

Há um mérito enorme neste livro de Possidónio Cachapa e que se prende com a própria noção de literatura. Ao mesmo tempo que torna reais, aos olhos do leitor, sonhos eternamente adiados, o autor acrescenta um conjunto de pinceladas negras a uma tela onde parecia imperar o cor-de-rosa. As águas sobre as quais desliza o barco de todos os sonhos apenas se mostram calmas à superfície, os redemoinhos negros e densos sempre presentes e prontos para arrastar para o fundo os mais incautos. “A Vida Sonhada das Boas Esposas” não é, de modo algum, um livro simples, daqueles que não obrigam a pensar, antes se mostra extraordinariamente profundo na mensagem que pretende transmitir e que encontra eco, se não no todo pelo menos em parte, no viver e no sentir de cada um de nós.

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