LIVRO: “A Vida Sonhada das Boas
Esposas”,
de Possidónio Cachapa
Ed. Companhia das Letras,
Novembro de 2019
“Só depois zarparam, em direcção
ao mar alto, a pedido de Ramón, que queria ter um momento de
intimidade com aquela a quem agora poderia chamar 'sua mulher'. E o
comandante do navio, que o conhecia desde menino, sorriu e mudou a
rota na direcção em que o Sol começava a pôr-se.”
É quando se vê a braços com uma
viuvez não antecipada, que Madalena percebe que o defunto
marido não seria merecedor, sequer, de uma milésima parte daquilo
que ela lhe foi dando ao longo da vida. Os filhos, caprichosos e
superficiais, subtraíram-lhe tempo e esperanças à medida que foram
crescendo e, mais do que nunca, mostram-se agora indisponíveis para
abdicar desta verdadeira “criada para todo o serviço”. Aos 66
anos, portanto, a mulher olha friamente para trás, percebendo que há
muito pouco de seu num tempo que é já passado. Como um punhado de areia
numa mão fechada, a vida escapa-se rapidamente e não há um minuto
a perder se quiser ainda viver a verdadeira felicidade.
Depois de um primeiro contacto com
Possidónio Cachapa, através desse extraordinário exercício de
escrita que é “Eu Sou A Árvore”, sou de novo convidado a
mergulhar no mais profundo da condição humana através de uma
fábula dos tempos modernos onde os sonhos se tornam reais e as
vidas, libertas das amarras cruéis do dever e das convenções, se
entregam, em toda a liberdade, à plena fruição. Acompanhando uma
linha narrativa apenas simples na aparência, o leitor mergulha na
história de Madalena para descobrir que nunca é tarde para, nas
asas de um sonho tornado real pela força do querer e pela coragem do
ser, saborear um pôr-do-sol glorioso com alguém que nos estima ao nosso lado.
Há um mérito enorme neste livro de
Possidónio Cachapa e que se prende com a própria noção de
literatura. Ao mesmo tempo que torna reais, aos olhos do leitor,
sonhos eternamente adiados, o autor acrescenta um conjunto de
pinceladas negras a uma tela onde parecia imperar o cor-de-rosa. As águas sobre as quais desliza o barco de todos os sonhos apenas se mostram calmas à
superfície, os redemoinhos negros e densos sempre presentes e
prontos para arrastar para o fundo os mais incautos. “A Vida Sonhada das
Boas Esposas” não é, de modo algum, um livro simples, daqueles
que não obrigam a pensar, antes se mostra extraordinariamente
profundo na mensagem que pretende transmitir e que encontra eco, se
não no todo pelo menos em parte, no viver e no sentir de cada um de
nós.
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