LIVRO: “As Falsas Memórias de
Manoel Luz”,
de Marlene Ferraz
Ed. Minotauro, Outubro de 2017
Num camisolão alvacento ajustado na
gola, o homem dividido acalcanhou o chão da sala ampliada e estirou
o pesado corpo no cadeirão estofado. Acertou os óculos abreviados,
o gesto muito aprumado no erguido livro e levou a vista às letras em
alinhado correr. “Ainda o homem ingénuo se enraivece por desejar
altas asas”. Pausa. Ajustou o pensamento aos ajuntamentos de
vocábulos, mas a composição parecia-lhe empolada de
emaranhamentos. De franzida testa, a inclinação das linhas orbitais
a denunciar exercícios de raciocínio e inferências prováveis
ainda por autenticar, levantou-se e começou a andar em reduzidos
círculos. Sem apurada razão, cogitou que a prosa da mulher
escrevente cairia num lugar do corpo falto de recebedores de luz e
melhor faria em devolver presto o livro ao olvido. Ganharia tempo
essencial e vital pacacidade. Ao revesso, a máquina cardial almejava
leitura perseverante e firme. Tencionou o sossego por mentor. Amanhã
consideraria melhor o que fazer. Rabiado, subiu a empinada escada
para o quarto acanhado. Da rua, o som abafado de adivinhados cães
dava-lhe as boas-noites.
Nesta peculiar abordagem a “As Falsas
Memórias de Manoel Luz” – e estou certo que Marlene Ferraz me
perdoará o atrevimento de tentar brincar com as palavras “ao seu
jeito” -, há um duplo propósito. Desde logo, transmitir a ideia
da dificuldade que tive em adaptar-me a uma narrativa exigente,
pródiga na adjectivação, recheada de vocábulos em desuso, as
pontas soltas da história distribuídas pela metade e a conta-gotas.
Mas também, e não menos importante, procurar perceber que tipo de
desafio se coloca a um autor que se ergue ao arrepio
dos cânones e, ao longo de trezentas e cinquenta páginas, consegue
a proeza de não se desviar um milímetro dos princípios norteadores
da sua escrita. É obra. Daí que Marlene Ferraz mereça a minha
maior admiração pela forma notável como conduz este seu romance, começando por se insinuar de mansinho nos gostos do leitor, até acabar por agarrá-lo com força pela via da razão e do coração.
Não vou adiantar muito sobre o livro,
para não quebrar a emoção da descoberta, mas sempre poderei
dizer que, ao falarmos deste Manoel Luz, falamos dos erros que
cometemos, dos julgamentos que fazemos, de como nos envolvemos e das
revelações que nos estão destinadas, como verdadeiras partidas do
destino. Ao seu lado, caminhamos por entre os nossos fantasmas, cruzando-nos com pintores e poetas, santos e loucos, homens práticos ou sonhadores. Fernando Pessoa, “o homem multiplicado”, também por aqui vagueia. Exímia na gestão dos tempos e na forma como marca o ritmo
da acção, a autora convida-nos a refazer as histórias da
História – do estertor do Estado Novo às auroras da liberdade e
por aí adiante –, ao mesmo tempo seguindo nos passos de Manoel Luz, as marcas de uma educação “a duas mãos” a tolher-lhe os passos e a carregá-lo de incertezas. Ao leitor pede-se que acredite
no livro, que invista nele e não desista. Este é um livro do tipo “primeiro estranha-se e depois entranha-se”, podendo garantir que não será necessário esperar
muito tempo até perceber que tem em mãos uma jóia rara.
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