LIVRO: “Princípio de Karenina”,
de Afonso Cruz
Edição | Clara Capitão
Ed. Companhia das Letras, Novembro
de 2018
“Eu seria muito infeliz num mundo
feliz. Ela seria feliz em qualquer mundo.”
Cada frase, cada linha, cada palavra é
boa, quando um livro é bom. É por isso que não se pode desperdiçar
absolutamente nada da leitura deste “Princípio de Karenina”. A
começar, desde logo, pela dedicatória “ao meu pai” e por essa
espécie de prólogo onde um pai, numa situação desesperada, se
dirige à filha, disposto a contar-lhe a sua história, a história
de ambos, sem quaisquer garantias de que ela chegará ao seu
destinatário. Entre a dúvida e a dor, “Princípio de Karenina”
está lançado. É elevado o patamar emocional alcançado pelas
breves frases iniciais, como são enormes as expectativas criadas no
leitor e que não sairão goradas no final das quase duzentas páginas
que compõem o livro. É que Afonso Cruz é exímio em contar uma
história que nos fala de amor incondicional, da entrega e da dádiva
que nele reside e de como faz de nós melhores pessoas.
Ao encontro de uma criança marcada
pela deformidade, de um pai fóbico e castrador, de uma mãe remetida
a um espaço secundário e de todo um conjunto de personagens únicas
nas suas peculiaridades, Afonso Cruz pega no leitor pela mão e
mostra-lhe como é precária a argamassa que o suporta, de mitos e
medos feita, as fronteiras que lhe são impostas a condicioná-lo
vida fora, como um ferrete que fere e tolhe. Não há descoberta sem
transgressão, não há vitória sem audácia, não há redenção
sem medo, não há perfeição sem liberdade plena. Chama-se
“Princípio de Karenina”, mas poderia chamar-se “a
insustentável leveza do ser”, tão forte e premente é a
necessidade de rasgar fronteiras físicas e morais, e fazê-lo sem
sucumbir. Sobretudo, quando julgamos saber que é no tapete à porta de casa que
começa o estrangeiro, a barbárie, o mal.
Até que ponto estamos dispostos a
partir em busca da felicidade, mesmo que para tal tenhamos de
abandonar a nossa zona de conforto, é uma interrogação que
acompanha toda a narrativa. Como o protagonista desta história,
também o leitor é convidado a questionar a sua postura perante o
mundo, a sua educação e valores, o quão felizes foram as suas
opções, o quanto terá perdido por não querer (ou não saber)
arriscar. Entre a rotina e a novidade, o desgosto e o deleite, a
subordinação e a liberdade, “Princípio de Karenina” abre-se
numa viagem que é também um desafio aos sentidos, ora leve como o
voo de uma borboleta ou o perfume de uma pele, ora amargo como o
sabor de longas esperas ou de corpos em suspenso. Uma viagem que nos
desperta para a vida e nos convida a ir o mais longe que pudermos.
Ainda que o mais longe seja a Cochinchina!
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