Páginas

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

LIVRO: "Princípio de Karenina"



LIVRO: “Princípio de Karenina”,
de Afonso Cruz
Edição | Clara Capitão
Ed. Companhia das Letras, Novembro de 2018


“Eu seria muito infeliz num mundo feliz. Ela seria feliz em qualquer mundo.”

Cada frase, cada linha, cada palavra é boa, quando um livro é bom. É por isso que não se pode desperdiçar absolutamente nada da leitura deste “Princípio de Karenina”. A começar, desde logo, pela dedicatória “ao meu pai” e por essa espécie de prólogo onde um pai, numa situação desesperada, se dirige à filha, disposto a contar-lhe a sua história, a história de ambos, sem quaisquer garantias de que ela chegará ao seu destinatário. Entre a dúvida e a dor, “Princípio de Karenina” está lançado. É elevado o patamar emocional alcançado pelas breves frases iniciais, como são enormes as expectativas criadas no leitor e que não sairão goradas no final das quase duzentas páginas que compõem o livro. É que Afonso Cruz é exímio em contar uma história que nos fala de amor incondicional, da entrega e da dádiva que nele reside e de como faz de nós melhores pessoas.

Ao encontro de uma criança marcada pela deformidade, de um pai fóbico e castrador, de uma mãe remetida a um espaço secundário e de todo um conjunto de personagens únicas nas suas peculiaridades, Afonso Cruz pega no leitor pela mão e mostra-lhe como é precária a argamassa que o suporta, de mitos e medos feita, as fronteiras que lhe são impostas a condicioná-lo vida fora, como um ferrete que fere e tolhe. Não há descoberta sem transgressão, não há vitória sem audácia, não há redenção sem medo, não há perfeição sem liberdade plena. Chama-se “Princípio de Karenina”, mas poderia chamar-se “a insustentável leveza do ser”, tão forte e premente é a necessidade de rasgar fronteiras físicas e morais, e fazê-lo sem sucumbir. Sobretudo, quando julgamos saber que é no tapete à porta de casa que começa o estrangeiro, a barbárie, o mal.

Até que ponto estamos dispostos a partir em busca da felicidade, mesmo que para tal tenhamos de abandonar a nossa zona de conforto, é uma interrogação que acompanha toda a narrativa. Como o protagonista desta história, também o leitor é convidado a questionar a sua postura perante o mundo, a sua educação e valores, o quão felizes foram as suas opções, o quanto terá perdido por não querer (ou não saber) arriscar. Entre a rotina e a novidade, o desgosto e o deleite, a subordinação e a liberdade, “Princípio de Karenina” abre-se numa viagem que é também um desafio aos sentidos, ora leve como o voo de uma borboleta ou o perfume de uma pele, ora amargo como o sabor de longas esperas ou de corpos em suspenso. Uma viagem que nos desperta para a vida e nos convida a ir o mais longe que pudermos. Ainda que o mais longe seja a Cochinchina!

Sem comentários:

Enviar um comentário