Páginas

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

LIVRO: "O Acontecimento"



LIVRO: “O Acontecimento”,
de Afonso Valente Batista
Ed. Glaciar, Novembro de 2014


De esperança, essa “paciência inquieta” como a define Bloch, mas também de saudade, fatalismo, desolação, ocultas figuras, opressores e oprimidos, estirpes e linhagens, premonições, malvadez, abandono e sangachos de atum, nos fala “O Acontecimento”, livro de Afonso Valente Batista surgido em finais de 2014 e que venho de visitar. Nele reencontro essa escrita viva que tanto apreciei no seu predecessor “O Muro” e, mais recentemente, em “Rebelião”, uma escrita de combate, frontal, que não se fica pela metade, antes gosta de “tratar os bois pelos nomes” e dizer as verdades tal como devem ser ditas.

Escrito no auge do magistério passista, o jugo da “troika” bem ferrado no cachaço das gentes, “O Acontecimento” é um olhar lúcido e desencantado sobre o Portugal que fomos e que somos, recuperando, com humor e uma profunda ironia, uma significativa parte da nossa História recente. Generais sem medo, jornadas de África, quedas de cadeira, claras madrugadas ou “primaveras” que são invernos, surgem ante o nosso olhar como inevitáveis acidentes de percurso, que só por momentos agitam as águas. Pelo meio, esse convívio com um quotidiano feito de banalidades, elevadas, por obra e graça de interesses obscuros, inscritos a letra miúda em torpes agendas políticas, ao patamar de “acontecimentos” que arrastam multidões e onde a populaça, cantando e rindo, lá segue embarcada.

“É preciso que algo mude para que as coisas fiquem na mesma”. Neste seu afã de recuperar memórias, é disto que “O Acontecimento” nos fala, lembrando-nos que, hoje como há cem anos, guardamos ciosamente os estigmas do provincianismo, do servilismo e da cobardia. Hoje, como há cem anos, de um lado temos políticos “ocos, vazios, pesporrentes” e, do outro, o Zé Povinho, esse saloio patético que se desdobra em manguitos nas costas do patrão, porque, à sua frente, se mostra incapaz de dizer o que pensa. Hoje, como há cem anos, assistimos aos mesmos arremedos de conveniências, controladas tolerâncias, desprezos encapotados, pequenas vinganças e ódios mesquinhos. E hoje, como há cem anos, continuamos à espera!


[Uma breve chamada de atenção para as páginas 181-182 e para esse pedacinho precioso de prosa que narra a história de Ana Sofia, “bonita, com asas de borboleta que lhe diziam que alcançaria o lado bom da vida”. Um grande momento de literatura.]

Sem comentários:

Enviar um comentário