TERTÚLIA: “Conversas Úteis”,
com Itamar Vieira Junior
Museu de Ovar
04 Jun 2019 | ter | 21:30
Um dos paradigmas que mais se tem
alterado nos últimos tempos tem a ver com uma cada vez maior proximidade
entre escritores e leitores, fruto da promoção crescente de
iniciativas que vão das apresentações de livros ou das comunidades
de leitores, às grandes manifestações como os festivais literários
ou as feiras do livro. Em Ovar, as tertúlias à roda dos livros são
uma realidade cultivada desde 2013, muito por obra e graça de Carlos
Nuno Granja, que teima em remar contra a corrente e em trazer ao encontro dos leitores importantes nomes ligados sobretudo às letras. Aqueles que
amam os livros, reconhecem e valorizam este esforço e percebem que
trazer às “Conversas Úteis” um autor da craveira de Itamar Vieira Junior, o vencedor do Prémio LeYa 2018, representa a possibilidade única de privar
com um dos grandes escritores do nosso tempo.
Marcada pela informalidade, esta sessão
deu a conhecer Itamar Vieira Junior nas suas dimensões enquanto
escritor e enquanto pessoa. Profundamente envolvido com os grandes
problemas sociais do nosso tempo, o escritor sabe que a literatura é
uma arma poderosa e usa-a em busca da verdade, denunciando os abusos
e combatendo as injustiças. É disto que trata o seu romance “Torto
Arado”, na verdade a estrela da noite em Ovar. Protagonizado por
mulheres, o livro foca-se em comunidades específicas do sertão
brasileiro e que o escritor conheceu de perto, quer no âmbito da sua
actividade profissional, quer também como parte do seu percurso
académico como geógrafo de formação e doutorado em Estudos
Étnicos e Africanos. “São comunidades de trabalhadores rurais que
descendem de escravos. São pessoas que, apesar da abolição da
escravatura, nunca deixaram de ser escravos de facto, indivíduos de
terceira classe, sujeitos à servidão”, refere, acrescentando que
“havia uma revolta em mim, precisava de contar esta história a
partir da realidade destas pessoas, uma realidade ainda muito presente nos
dias de hoje no Brasil e que os brasileiros desconhecem”. E conclui: “Este
livro é um grito!”
Influenciado por escritores como
Guimarães Rosa, Jorge Amado ou João Cabral de Melo Neto, Itamar
Vieira Júnior começou a escrever ainda na adolescência. O projecto
dum eventual primeiro livro, narrando as venturas e desventuras de duas irmãs,
terminou ao fim de oitenta páginas. Dele chegou até hoje apenas o
título, “Torto Arado”, que o escritor foi buscar à poesia de
Tomás António Gonzaga. Ou talvez tenha chegado também algum
pedacinho dessa ideia inicial, sobretudo quando percebemos que
(quase) tudo se passa em torno das irmãs Bibiana e Belonísia.
Escrito ao longo de um ano e meio, o livro foi submetido a concurso
ao Prémio Leya e a expectativa quanto a uma eventual vitória nunca
passou pelas cogitações do escritor. Daí que quando Itamar Vieira
Junior, depois de ter sido informado da decisão do júri pelo
próprio Manuel Alegre, ligou para a mãe a dar a notícia, a
resposta não se fez esperar: “Deve ser trote, meu filho”. Não
foi “trote” e, daí em diante, foi um nunca mais acabar de
emoções, que tiveram o primeiro momento alto com a edição
inaugural do livro em Portugal, em Fevereiro passado, e muito
recentemente, quando o autor recebeu o Prémio, durante a Feira do Livro de
Lisboa. Agora é a vez do Brasil acolher a publicação de “Torto
Arado”, já no próximo mês de Agosto, e esse será, quiçá, o
momento mais aguardado nesta viagem de sucesso: “Espero que o livro
tenha um bom alcance junto dos leitores brasileiros”, diz.
Já na recta final da conversa, o
público, que acorreu em número considerável ao Museu de Ovar, não se coibiu de colocar questões ao escritor, dele extraindo um
conjunto de ideias que ajudaram a complementar toda a conversa
inicial. Quanto ao Prémio LeYa, Itamar Vieira Junior reconhece que
“tem uma chancela forte” e que “a responsabilidade quanto a
próximas obras que possam vir a público aumenta”. Todavia,
“escrever é um projecto de vida e eu continuaria a escrever,
independentemente do prémio”, diz. Outro aspecto interessante
ventilado pelo escritor refere-se às conexões entre “Torto Arado”
e alguns títulos de autores portugueses, dando como exemplo José
Saramago e “Levantado do Chão”. A propósito, diz: “Há
aspectos comuns a ambos os livros que têm um enorme valor universal
– o amor à terra, o pão que dela se extrai – e que acabam,
forçosamente, por tocar os leitores”. E falou-se, claro, de
política, essa entidade presente em tudo o que fazemos e mesmo no
que não fazemos: “Num mundo imediatista, estarmos aqui reunidos,
esquecidos da televisão ou do telemóvel, é um acto político. Uma
subversão!” Uma bela subversão, diga-se, numa bela noite de
conversa que, tão cedo, não se esquecerá.
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