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quarta-feira, 15 de maio de 2019

LIVRO: "Até Que As Pedras se Tornem Mais Leves Que A Água"



LIVRO: “Até Que As Pedras Se Tornem Mais Leves Que A Água”,
de António Lobo Antunes
Ed. Publicações Dom Quixote, Outubro de 2017


“ - Devia ter morrido em África você
E quem te garante que não morri pequena, quem te garante que estou vivo”

Após uma passagem pelas duas páginas iniciais deste livro, reserve-se o leitor o direito de se quedar por aí, fechá-lo e arrumá-lo muito bem arrumadinho na estante, esquecendo-o para sempre. Caso o não faça, saiba que tem pela frente um exercício de funambulismo sem rede, um desafio de equilíbrio precário entre a loucura e a lucidez, o desvario e a coerência, a irracionalidade e a lógica, o absurdo e o sentido. E que se prepare para lidar com a crónica de duas mortes anunciadas, os fantasmas duma guerra insana a rodeá-lo, a agarrarem-se-lhe à roupa, à pele, às vísceras e a levarem-no, rio acima, numa viagem de pesadelo ao coração das trevas.

Neste embate inaugural com a escrita de António Lobo Antunes, um dos aspectos que mais me tocou teve a ver com essa capacidade de contar a história duma perspectiva vincadamente pessoal, as experiências vividas e sofridas vertidas numa narrativa tornada amálgama de emoções, de sentidos sem sentido, as ideias a desagruparem-se, desencontradas, numa lógica que só ao autor assiste e que o leitor apenas pode adivinhar. Uma simples palavra, um movimento breve, o sussurro do vento numa nespereira, um carro que se escuta ao longe, uma camisa de rendas numa gaveta da cómoda são “cliques” duma brutalidade insuspeitada, as ideias a dissociarem-se, o olhar até então calmo a turvar-se, a escurecer, a faca cada vez mais fundo, cinco segundos e uma ofensiva que rebenta, o horror em volta, Angola de novo e sempre aqui.

Talvez em nenhum outro livro eu tenha encontrado uma relação tão forte, tão íntima, entre a forma e o conteúdo. Ao mesmo tempo piedoso e duro, compassivo e cruel, o autor denota uma capacidade ímpar de se desdobrar na revelação duma personalidade torturada que tenta expulsar-se de si sem o conseguir, os estilhaços duma guerra sem fim a voarem em todas as direcções, a alojarem-se nas personagens e a contaminarem o espaço em volta, leitores incluídos. Escreve muito bem, o homem, mas tem, sobretudo, a coragem de escrever sobre assuntos tão pessoais, tão íntimos. Porque são assuntos que normalmente se calam, que não se dizem. Que contam uma história muito diferente daquela contada nos bancos de escola, duma crueza a roçar o insuportável, sem marcha lento e à vontade que dê esperança à vida.

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