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sábado, 16 de março de 2019

LIVRO: "A Imortal da Graça"



LIVRO: “A Imortal da Graça”,
de Filipe Homem Fonseca
Edição | Lúcia Pinho e Melo
Ed. Quetzal Editores, Fevereiro de 2019


Galopando no dorso dos voos “low-cost”, o turismo de massas veio para ficar e Lisboa redescobre-se na ânsia de bem receber os povos do mundo com livre-trânsito pela cidade. Obras irrompem por todo o lado, a especulação imobiliária dispara, tuk-tuks são os novos Fórmula 1, lojas de bairro dão lugar a “concept stores” e, nos tascos de outrora, o Schott-Zwiesel substitui o baço copo de três e os pastelinhos de bacalhau são uma “food experience” única e irrepetível. Debaixo de fogo, o bairro da Graça é um reduto fortificado, fechado sobre si mesmo, onde iremos conhecer um punhado de resistentes, hierarquicamente escalonados em função da idade. É das suas vidas que “A Imortal da Graça” nos fala, puzzle de histórias e memórias que desvendam um mapa humano duro e cruel.

Mais dos que as fronteiras geográficas de um país ou de uma cidade, de um bairro ou de um quarto, são as fronteiras que cada um estabelece na própria mente que marcam pela ironia e engenho a narrativa de “A Imortal da Graça”. Não estamos aqui perante um “minha casa, meu mundo”, antes enfrentamos um solene “minha cabeça, meu reino”, até porque de cabeças “coroadas” trata o livro, a “rainha” a saborear altivamente um reino em ebulição, as “aspirantes ao trono” mergulhadas na intriga e na maledicência, corvos negros à espera de vez. Cada dia que passa é um dia a menos para a morte, sendo esta uma verdade que toca a todos; ainda assim, “antes rainha por um dia que duquesa a vida toda!”

Subtil, inteligente, irreverente, profundamente mordaz e dotado de um humor requintado, “A Imortal da Graça” é um romance particularmente visual, neste sentido trilhando os caminhos do cartoon. Desenho animado em movimento perpétuo, obra inacabada sem fim à vista, súmula de imperfeições, desarranjos e contradições, Graça é aqui nome de bairro mas também de mulher, genuína e autêntica, as duas misturando-se e confundindo-se na lama e no lodo em que tudo se afunda. Imaginativo e imensamente divertido, “A Imortal da Graça” prova o talento de Filipe Homem Fonseca, revelando-nos uma cidade que se esconde sob o vasto manto das aparências e trazendo à luz do dia um quotidiano feito de solidão e abandono.

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