LIVRO: “A Imortal da Graça”,
de Filipe Homem Fonseca
Edição | Lúcia Pinho e Melo
Ed. Quetzal Editores, Fevereiro de
2019
Galopando no dorso dos voos “low-cost”,
o turismo de massas veio para ficar e Lisboa redescobre-se na ânsia
de bem receber os povos do mundo com livre-trânsito pela cidade. Obras
irrompem por todo o lado, a especulação imobiliária dispara,
tuk-tuks são os novos Fórmula 1, lojas de bairro dão lugar a “concept
stores” e, nos tascos de outrora, o Schott-Zwiesel substitui o
baço copo de três e os pastelinhos de bacalhau são uma “food
experience” única e irrepetível. Debaixo de fogo, o bairro da Graça é um reduto
fortificado, fechado sobre si mesmo, onde iremos conhecer um punhado
de resistentes, hierarquicamente escalonados em função da idade. É
das suas vidas que “A Imortal da Graça” nos fala, puzzle de
histórias e memórias que desvendam um mapa humano duro e cruel.
Mais dos que as fronteiras geográficas
de um país ou de uma cidade, de um bairro ou de um quarto, são as
fronteiras que cada um estabelece na própria mente que marcam
pela ironia e engenho a narrativa de “A Imortal da Graça”. Não
estamos aqui perante um “minha casa, meu mundo”, antes
enfrentamos um solene “minha cabeça, meu reino”, até porque de
cabeças “coroadas” trata o livro, a “rainha” a saborear
altivamente um reino em ebulição, as “aspirantes ao trono”
mergulhadas na intriga e na maledicência, corvos negros à espera de vez. Cada dia que passa é um
dia a menos para a morte, sendo esta uma verdade que toca a todos; ainda assim, “antes rainha por um dia que duquesa a
vida toda!”
Subtil, inteligente, irreverente,
profundamente mordaz e dotado de um humor requintado, “A Imortal da
Graça” é um romance particularmente visual, neste sentido
trilhando os caminhos do cartoon.
Desenho animado em movimento perpétuo, obra inacabada sem fim à
vista, súmula de imperfeições, desarranjos e contradições, Graça
é aqui nome de bairro mas também de mulher, genuína e autêntica,
as duas misturando-se e confundindo-se na lama e no lodo em que tudo
se afunda. Imaginativo e imensamente divertido, “A Imortal da
Graça” prova o talento de Filipe Homem Fonseca, revelando-nos uma
cidade que se esconde sob o vasto manto das aparências e trazendo à luz do dia um quotidiano feito de solidão e abandono.
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