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quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

CINEMA: "Raiva"



CINEMA: “Raiva”
Realização | Sérgio Tréfaut
Argumento | Sérgio Tréfaut, a partir do romance “Seara de Vento”, de Manuel da Fonseca
Fotografia | Acácio de Almeida
Montagem | Karen Harley
Interpretação | Isabel Ruth, Leonor Silveira, Hugo Bentes, Kaio César, Rita Cabaço, Adriano Luz, Lia Gama, Diogo Dória, Dinis Gomes, Catarina Wallenstein, Marília Villaverde Cabral, José Pinto
Produção | Sérgio Tréfaut, Carolina Dias, José Barahona, Serge Lalou, Claire Dornoy
Portugal, França, Brasil | 2018 | Drama | 84 Minutos | M/14
Teatro Aveirense
12 Fev 2019 | ter | 21:30


Em 1933, os jornais portugueses deram destaque a uma história violenta que ficou conhecida como “a tragédia de Beja”. O episódio foi capa do Diário de Notícias e transformou-se num folhetim informativo, com direito a ilustração. Tudo começou à hora do jantar, quando um camponês armado invadiu a casa de um grande proprietário alentejano e disparou sobre dois homens, matando-os imediatamente. Eram o dono da propriedade e o seu filho. De seguida, o homicida fugiu e trancou-se no casebre isolado onde vivia com a família, vendo-se rapidamente cercado pela guarda pesadamente armada. Mas não se rendeu. Foram chamados reforços. O próprio exército. O tiroteio foi tão intenso que mais de cinquenta anos depois havia balas nas paredes do casebre. Muitos soldados caíram e o chefe da guarda foi morto. Existem várias versões sobre o final do “louco assassino”. Mas a imprensa da época garante que, para pasmo de todos, o seu enterro foi muito concorrido. A história transformou-se num mito.

Vinte anos mais tarde, Manuel da Fonseca, escritor e jornalista de renome, investigou este episódio para criar o romance “Seara de Vento”. Na versão de Manuel da Fonseca, o monstro criado pela imprensa durante a tragédia de Beja transforma-se num herói solitário, vítima do abuso de poder e símbolo de resistência. O livro é um grito de indignação face à injustiça social no Alentejo, onde ser dono das grandes propriedades significava também ter mão no poder político, na guarda, na igreja e ser dono dos homens. O livro tem algo de western, com tiroteios, paisagens desertas e um herói soturno. Mas também tem algo de épico. É um romance militante, marcado por um certo romantismo político. Viria logo a ser proibido e retirado das livrarias. A frase final do romance “um homem só não vale nada”, atirada em forma de grito desesperado por uma velha que representa a própria terra, significa talvez “unidos podemos mudar o mundo”. A esperança na revolta e no ideal socialista está no horizonte.

“Raiva”, a versão cinematográfica deste livro nada tem de romântico, nem de naturalista. É seca, sem qualquer tentativa de comiseração, sem qualquer apelo ao sentimentalismo ou ao idealismo. Não se oferecem promessas políticas de um futuro melhor, mesmo que alguns justamente se unam e tentem lutar de forma clandestina. A injustiça é aqui retratada como um ciclo que se repete, e se repetirá sempre sob novas formas, mesmo que passemos toda a vida a lutar contra ela. Nesta adaptação de “Seara de Vento”, é notório o esforço de Tréfaut para limpar os diálogos de todas as explicações, de toda a cartilha ideológica. Aqui, os mortos são apenas mortos, não são heróis nem símbolos. É convicção do realizador que “o espectador tem de pensar sem a ajuda de um padre, sem a tutoria de manuais políticos ou a facilidade dos violinos manipuladores para decidir o que sente”. Resta um filme silencioso, em que as caras e os corpos dizem mais do que os discursos. Filmado na tradição dos grandes clássicos, “Raiva” é um filme rigoroso e imensamente belo, que exige uma visão comprometida e atenta!

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