CINEMA: “Raiva”
Realização | Sérgio Tréfaut
Argumento | Sérgio Tréfaut, a
partir do romance “Seara de Vento”, de Manuel da Fonseca
Fotografia | Acácio de Almeida
Montagem | Karen Harley
Interpretação | Isabel Ruth,
Leonor Silveira, Hugo Bentes, Kaio César, Rita Cabaço, Adriano Luz,
Lia Gama, Diogo Dória, Dinis Gomes, Catarina Wallenstein, Marília
Villaverde Cabral, José Pinto
Produção | Sérgio Tréfaut,
Carolina Dias, José Barahona, Serge Lalou, Claire Dornoy
Portugal, França, Brasil | 2018 |
Drama | 84 Minutos | M/14
Teatro Aveirense
12 Fev 2019 | ter | 21:30
Em 1933, os jornais portugueses deram
destaque a uma história violenta que ficou conhecida como “a
tragédia de Beja”. O episódio foi capa do Diário de Notícias e
transformou-se num folhetim informativo, com direito a
ilustração. Tudo começou à hora do jantar, quando um
camponês armado invadiu a casa de um grande proprietário alentejano
e disparou sobre dois homens, matando-os imediatamente. Eram o dono
da propriedade e o seu filho. De seguida, o homicida fugiu e
trancou-se no casebre isolado onde vivia com a família, vendo-se
rapidamente cercado pela guarda pesadamente armada. Mas não se
rendeu. Foram chamados reforços. O próprio exército. O tiroteio
foi tão intenso que mais de cinquenta anos depois havia balas nas
paredes do casebre. Muitos soldados caíram e o chefe da guarda foi
morto. Existem várias versões sobre o final do “louco assassino”.
Mas a imprensa da época garante que, para pasmo de todos, o seu
enterro foi muito concorrido. A história transformou-se num mito.
Vinte anos mais tarde, Manuel da
Fonseca, escritor e jornalista de renome, investigou este episódio
para criar o romance “Seara de Vento”. Na versão de Manuel da
Fonseca, o monstro criado pela imprensa durante a tragédia de Beja
transforma-se num herói solitário, vítima do abuso de poder e
símbolo de resistência. O livro é um grito de indignação face à
injustiça social no Alentejo, onde ser dono das grandes propriedades
significava também ter mão no poder político, na guarda, na igreja
e ser dono dos homens. O livro tem algo de western, com tiroteios,
paisagens desertas e um herói soturno. Mas também tem algo de
épico. É um romance militante, marcado por um certo romantismo
político. Viria logo a ser proibido e retirado das livrarias. A
frase final do romance “um homem só não vale nada”, atirada em
forma de grito desesperado por uma velha que representa a própria
terra, significa talvez “unidos podemos mudar o mundo”. A
esperança na revolta e no ideal socialista está no horizonte.
“Raiva”, a versão
cinematográfica deste livro nada tem de romântico, nem de
naturalista. É seca, sem qualquer tentativa de comiseração, sem
qualquer apelo ao sentimentalismo ou ao idealismo. Não se oferecem
promessas políticas de um futuro melhor, mesmo que alguns justamente
se unam e tentem lutar de forma clandestina. A injustiça é aqui
retratada como um ciclo que se repete, e se repetirá sempre sob
novas formas, mesmo que passemos toda a vida a lutar contra ela.
Nesta adaptação de “Seara de Vento”, é notório o esforço de
Tréfaut para limpar os diálogos de todas as explicações, de toda
a cartilha ideológica. Aqui, os mortos são apenas mortos, não são
heróis nem símbolos. É convicção do realizador que “o
espectador tem de pensar sem a ajuda de um padre, sem a tutoria de
manuais políticos ou a facilidade dos violinos manipuladores para
decidir o que sente”. Resta um filme silencioso, em que as caras e
os corpos dizem mais do que os discursos. Filmado na tradição dos
grandes clássicos, “Raiva” é um filme rigoroso e imensamente
belo, que exige uma visão comprometida e atenta!
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