LIVRO: “O Centro do Mundo”,
de
Ana Cristina Leonardo
Edição | Lúcia Pinho e
Melo
Quetzal Editores, Junho de 2018
Nos seus usos e costumes, nas suas
gentes, em tudo aquilo que a torna peculiar e
única, notável pelos melhores ou piores motivos, Olhão, como
qualquer outra terra, sempre terá um par de originais e
interessantes histórias para contar. Se foi este o ponto de partida
para o primeiro romance de Ana Cristina Leonardo, “O Centro do
Mundo”, não o sabemos. Sabemos, isso sim, que naquela história
que atravessa um par de décadas e nos fala de Boris Skossyreff - um
trampolineiro russo que se faz passar por aristocrata e, na sua rota
de imposturices, acaba por tropeçar em Olhão -, a autora faz
questão de nos apresentar a cidade onde nasceu.
O livro fala,
pois, de Boris Skossyreff, pequena personagem à margem da grande
História. Burlão em terras de Sua Majestade, mulherengo em França
e nas Américas, injectado de sangue azul na Holanda, rei de Andorra
por uma semana, enfastiado em Olhão à espera de um barco que o leve
a Marrocos e espião do lado dos alemães, quase viu o curso da sua
vida atribulada chegar ao fim nos gulags da Sibéria, aos quais
acabaria por sobreviver. Mas o que é isto, se comparado com o título
de Campeão de Portugal do Sporting Olhanense, nos idos de 1924,
depois de bater o Porto por quatro a dois, a “ubiquidade
inverosímil” do Tamanqueiro a fazer toda a diferença? Ou do salto
de Manny Zorra para os States, onde emprestaria engenho e astúcia
aos homens de Al Capone? Ou dos quatro que se meterem num caíque até
Odessa, “quatro mil e quinhentos quilómetros por terra, quase duas
mil e quinhentas milhas por mar”, para ir buscar cereal? Ou desse
título de “Vila da Restauração”, concedido à Vila de Olhão
pelo Príncipe Regente, futuro rei D. João VI, num gesto de
agradecimento pelos valorosos serviços prestados na luta contra os
franceses?
É na arte do saber contar uma história que Ana
Cristina Leonardo se distingue, emprestando ao seu romance de estreia
uma identidade própria que faz dele um objecto inteligente e
particularmente divertido. Desenhada a partir dum conjunto de elipses
que se vão sucedendo em torno das diatribes deste russo, a narrativa
mostra-se “verborreica”, alinhavando uma sequência de peripécias
que estão para o livro como o “corridinho” está para a música
tradicional do Algarve. Tudo isto com enorme graça e mimetizando,
frequentemente, o linguajar daquelas gentes. De Boris Skossireff, um
verdadeiro oportunista e mestre na arte da sobrevivência, não
rezará a História. Por via da ficção, todavia, Olhão ganhou uma
personagem, para juntar ao galarim da história. Todos saímos a
ganhar com isso!
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