LIVRO: “Ecologia”,
de Joana Bértholo
de Joana Bértholo
Editorial Caminho, Maio de 2018
“O propósito de uma armadilha de
peixes é apanhar peixes e,
Uma vez o peixe apanhado, a armadilha é
esquecida.
O propósito da armadilha de coelhos é
apanhar coelhos.
Uma vez o coelho caçado, a armadilha é
esquecida.
O propósito das palavras é transmitir
ideias. Uma vez as ideias
transmitidas, as palavras podem ser
esquecidas.
Onde encontro um homem que tenha
esquecido as palavras?
É com ele que eu quero conversar.”
Chuang Tzu, século IV a.C.
É de palavras que nos fala “Ecologia”, o último romance de Joana Bértholo, no prelo desde o passado mês de Maio. Habitando um futuro não muito distante do nosso, o livro descreve aquilo em que o mundo se tornou graças a tecnologias cada vez mais complexas, dando lugar a uma nova ordem social a qual, condensando uma nova forma de monocracia, dispensa o Estado. Cruzar as leis da oferta e da procura com o poder e sedução das manobras de marketing foi o caminho, o medo e o populismo as alavancas. Resultado: Um regime assente num refinamento do capitalismo, onde tudo se paga, até as palavras!
A leitura de
“Ecologia”, de Joana Bértholo, força-nos a recuar no tempo, ao
encontro do incontornável “1984”, de George Orwell. O livro,
recorde-se, descrevia de forma realista o vastíssimo sistema de
fiscalização em que passaram a assentar as sociedades capitalistas,
a electrónica a sustentar um sofisticado sistema repressivo, o “big
brother” a converter-se numa presença real e quotidiana. Sendo o
virtual uma realidade demasiado distante, incompreensível mesmo para
a generalidade dos leitores à época, é natural que George Orwell
fosse inscrito na lista dos visionários e o livro passasse a figurar
na secção de Ficção Científica. Com “Ecologia”, porém, a
realidade é outra e bem diferente. O conhecimento que hoje temos do
mundo e a percepção do que se passa à nossa volta torna o livro
assustadoramente actual, um breve passo de distância entre a nossa
realidade e a realidade ficcionada (muito mais breve do que se possa
imaginar). Para tal, Joana Bértholo desenvolve a narrativa a partir
dum conjunto de personagens com as quais facilmente nos
identificamos - porque vivendo os mesmos dramas e convivendo com as
mesmas dúvidas que nós -, alicerçando-a em acontecimentos próximos ou mesmo coincidentes com aqueles que marcam
a actualidade.
Clarividente, segura no exercício de somar dois mais dois, a autora rejeita o tom profético para nos dar uma imagem daquilo que está em marcha. Privatizar
a palavra como forma de controlar as massas pode parecer chocante mas
não é nada que não tivesse acontecido já (veja-se o caso do
franquismo e a forma como se silenciou o catalão, o galego e o
basco); privatizar o pensamento, isso sim, é diabólico, mas sabemos
também o quanto tem de correspondência com a ambição dos ricos e
poderosos. Divertido, mordaz, cáustico, amargo, contundente,
sarcástico, irónico, incisivo, corrosivo, provocante, estimulante,
mobilizador e, sobretudo, extraordinariamente inteligente, “Ecologia”
é um romance que encerra um conjunto de mensagens sólidas e avisos
severos. Há que atentar nele e elevar a guarda. A terceira vaga está
a chegar!
NOTA: Brilhante
a forma como Joana Bértholo deslinda a questão do título deste seu
livro. Uma solução notável, como notável é todo o trabalho em
torno deste “Ecologia”.
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