DEBATE: “Como Nasce um Romance?”,
com Ana Margarida de Carvalho e
Mário de Carvalho
Moderadora | Inês Fonseca Santos
Programação | Eduardo Agualusa e
Anabela Mota Ribeiro
Feira do Livro do Porto 2018
Auditório da Biblioteca Municipal
Almeida Garrett, Porto
23 Set 2018 | dom | 19:00
Com uma programação que foi, uma vez
mais, muito além da simples apresentação e venda de livros, a
Feira do Livro do Porto teve no espaço de Debate um dos momentos
mais altos, a sua enorme qualidade e interesse a fazerem esgotar a
lotação do Auditório da Biblioteca Almeida Garrett em praticamente
todas as sessões. Foi assim na abertura, que contou com a presença
de José Mário Branco, o autor homenageado desta edição da Feira,
e foi assim nas sessões seguintes, que viram em palco Mia Couto,
Afonso Cruz, Daniel Cohn-Bendit – o principal rosto da revolta
estudantil francesa do Maio de 1968 -, Filipa Martins, João Pinto
Coelho, Kalaf Epalanga, Telma Tvon, Leila Slimani, José Riço
Direitinho, Valério Romão, Mário de Carvalho e Ana Margarida de
Carvalho, os dois últimos frente a frente na derradeira sessão.
É precisamente desta última sessão –
uma mesa que, pela primeira vez, juntou pai e filha para falarem dos
seus percursos enquanto escritores -, que recupero um breve conjunto
de apontamentos e os partilho com os leitores deste blogue. Girando à
volta do tema “Como Nasce um Romance?”, a conversa acabou por
revelar, mais do que os escritores, as pessoas que lhes estão por
detrás. Mas porque tudo tem um princípio, a primeira questão
prendeu-se com os passos iniciais dos autores no delicado processo de
escrever. Mário de Carvalho confessou que “começar a escrever não
foi uma escolha nem uma inevitabilidade, mas talvez antes um acaso”,
referindo as influências que recebeu dum grupo de amigos que se
empenhavam em produzir matéria literária e o levaram a ir
respondendo aos sucessivos pedidos para escrever alguns textos. “A
minha vida literária tem sido uma vida de resposta”, resumiu. Já
Ana Margarida de Carvalho vem da área do jornalismo, com provas
dadas na profissão, uma vasta experiência na escrita de guiões e
na crítica cinematográfica e um percurso que sempre a manteve nas
proximidades dessa ténue linha que separa a realidade da ficção.
“A escrita implica um processo longo de acumulação e [ao fim de
25 anos de jornalismo] talvez o meu tempo de escritora seja o tempo
certo”, disse, para acrescentar que “ter um pai como o Mário de
Carvalho inibe e alimenta, ao mesmo tempo, a vontade de ser
escritor”.
Para a escritora, falar do pai é
matéria incontornável: “Sempre conheci o meu pai a escrever, as
minhas noites sempre foram acompanhadas do tique-tique da máquina de
escrever e talvez não tenha dado muito valor ao facto dele ser
escritor, porque isso para mim era uma coisa natural”, recorda. A
partir do momento em que começou a escrever, porém, esse olhar terá
mudado de forma significativa: “Há um lado funesto nesta coisa da
literatura, o assumirmos que a nossa vida não basta e querermos mais
e mais. Noto um olhar muito atento no meu pai e uma capacidade de
virar a atenção para outro lado. É um olhar de frente, não
evidente à aparência das coisas, de certa forma subversivo”,
disse.
Pegando nas palavras de Ana Margarida
de Carvalho, a moderadora, Inês Fonseca Santos, fez notar que
“desenvolvemos a nossa vida como uma narrativa e andamos sempre à
procura de histórias”, o que leva Mário de Carvalho a responder
citando Luisa Costa Gomes: “Era uma vez uma história que tinha uma
grande vontade de ser contada”. E concretiza: “As histórias
podem ser suscitadas pelos acontecimentos mais diversos, uma cena
doméstica, um episódio no autocarro, um filme, um livro que se lê.
Tudo pode servir para iniciar uma história”. O processo que
permite prosseguir com a história até ao fim é que já não será
tão linear, o que leva o escritor a admitir ter imensos textos
abandonados: “Não encontrei forma de continuar com eles e para lá
estão”, reconhece. Mas acrescenta: “Uma história tem de
resultar num estranhamento, tornar o familiar numa coisa estranha. É
esse o dom do escritor, mostrar o outro lado do mundo e fazê-lo
diferente”.
“O primeiro verso é-nos dado e os
outros são conquistados”. Inês Fonseca Santos, uma vez mais, a
lançar a discussão, desta vez em torno da inspiração, e Mário de
Carvalho a revelar algum cepticismo em relação ao assunto:
“Desconfio muito da inspiração, quase como se se invocasse o
espírito a descer sobre o escritor”, disse. Já Ana Margarida de
Carvalho refere que o que mais lhe serve de inspiração “é a
última linha que escrevi”, acrescentando: “Ligo muito à
associação de ideias, prefiro escrever sem reflectir em demasia.
Sou pouco disciplinado, sou atacada por mim própria e pelo meu
próprio caos”. E conclui com uma imagem muito bonita: “Da carga
que a palavra tem construímos um livro, como um novelo cheio de
pontas soltas que se vai transformando numa peça de malha”.
As últimas palavras são abertamente
dirigidas ao leitor. Mário de Carvalho defende que “fazem falta
leitores que construam o livro consigo, que sejam parceiros do
escritor”, reforçando que “sem o leitor o livro não existe
porque o leitor também faz o livro”. Mas faz notar que “uma
coisa é o leitor e outra é o público, o que compra o livro e que
traz popularidade ao escritor, mas isso é baixar o nível. O jogo é
com o leitor e não com o público, não com aqueles que aligeiram a
leitura.” Ana Margarida de Carvalho corrobora a ideia, fazendo
notar que também há aqueles escritores que aligeiram a escrita:
“Isso é tratar o leitor como um consumidor. Isso é tratar mal o
leitor, é apequená-lo e só denota arrogância da parte de quem o
faz”, conclui.
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