Páginas

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

DEBATE: "Como Nasce um Romance?"



DEBATE: “Como Nasce um Romance?”,
com Ana Margarida de Carvalho e Mário de Carvalho
Moderadora | Inês Fonseca Santos
Programação | Eduardo Agualusa e Anabela Mota Ribeiro
Feira do Livro do Porto 2018
Auditório da Biblioteca Municipal Almeida Garrett, Porto
23 Set 2018 | dom | 19:00


Com uma programação que foi, uma vez mais, muito além da simples apresentação e venda de livros, a Feira do Livro do Porto teve no espaço de Debate um dos momentos mais altos, a sua enorme qualidade e interesse a fazerem esgotar a lotação do Auditório da Biblioteca Almeida Garrett em praticamente todas as sessões. Foi assim na abertura, que contou com a presença de José Mário Branco, o autor homenageado desta edição da Feira, e foi assim nas sessões seguintes, que viram em palco Mia Couto, Afonso Cruz, Daniel Cohn-Bendit – o principal rosto da revolta estudantil francesa do Maio de 1968 -, Filipa Martins, João Pinto Coelho, Kalaf Epalanga, Telma Tvon, Leila Slimani, José Riço Direitinho, Valério Romão, Mário de Carvalho e Ana Margarida de Carvalho, os dois últimos frente a frente na derradeira sessão.

É precisamente desta última sessão – uma mesa que, pela primeira vez, juntou pai e filha para falarem dos seus percursos enquanto escritores -, que recupero um breve conjunto de apontamentos e os partilho com os leitores deste blogue. Girando à volta do tema “Como Nasce um Romance?”, a conversa acabou por revelar, mais do que os escritores, as pessoas que lhes estão por detrás. Mas porque tudo tem um princípio, a primeira questão prendeu-se com os passos iniciais dos autores no delicado processo de escrever. Mário de Carvalho confessou que “começar a escrever não foi uma escolha nem uma inevitabilidade, mas talvez antes um acaso”, referindo as influências que recebeu dum grupo de amigos que se empenhavam em produzir matéria literária e o levaram a ir respondendo aos sucessivos pedidos para escrever alguns textos. “A minha vida literária tem sido uma vida de resposta”, resumiu. Já Ana Margarida de Carvalho vem da área do jornalismo, com provas dadas na profissão, uma vasta experiência na escrita de guiões e na crítica cinematográfica e um percurso que sempre a manteve nas proximidades dessa ténue linha que separa a realidade da ficção. “A escrita implica um processo longo de acumulação e [ao fim de 25 anos de jornalismo] talvez o meu tempo de escritora seja o tempo certo”, disse, para acrescentar que “ter um pai como o Mário de Carvalho inibe e alimenta, ao mesmo tempo, a vontade de ser escritor”.

Para a escritora, falar do pai é matéria incontornável: “Sempre conheci o meu pai a escrever, as minhas noites sempre foram acompanhadas do tique-tique da máquina de escrever e talvez não tenha dado muito valor ao facto dele ser escritor, porque isso para mim era uma coisa natural”, recorda. A partir do momento em que começou a escrever, porém, esse olhar terá mudado de forma significativa: “Há um lado funesto nesta coisa da literatura, o assumirmos que a nossa vida não basta e querermos mais e mais. Noto um olhar muito atento no meu pai e uma capacidade de virar a atenção para outro lado. É um olhar de frente, não evidente à aparência das coisas, de certa forma subversivo”, disse.

Pegando nas palavras de Ana Margarida de Carvalho, a moderadora, Inês Fonseca Santos, fez notar que “desenvolvemos a nossa vida como uma narrativa e andamos sempre à procura de histórias”, o que leva Mário de Carvalho a responder citando Luisa Costa Gomes: “Era uma vez uma história que tinha uma grande vontade de ser contada”. E concretiza: “As histórias podem ser suscitadas pelos acontecimentos mais diversos, uma cena doméstica, um episódio no autocarro, um filme, um livro que se lê. Tudo pode servir para iniciar uma história”. O processo que permite prosseguir com a história até ao fim é que já não será tão linear, o que leva o escritor a admitir ter imensos textos abandonados: “Não encontrei forma de continuar com eles e para lá estão”, reconhece. Mas acrescenta: “Uma história tem de resultar num estranhamento, tornar o familiar numa coisa estranha. É esse o dom do escritor, mostrar o outro lado do mundo e fazê-lo diferente”.

“O primeiro verso é-nos dado e os outros são conquistados”. Inês Fonseca Santos, uma vez mais, a lançar a discussão, desta vez em torno da inspiração, e Mário de Carvalho a revelar algum cepticismo em relação ao assunto: “Desconfio muito da inspiração, quase como se se invocasse o espírito a descer sobre o escritor”, disse. Já Ana Margarida de Carvalho refere que o que mais lhe serve de inspiração “é a última linha que escrevi”, acrescentando: “Ligo muito à associação de ideias, prefiro escrever sem reflectir em demasia. Sou pouco disciplinado, sou atacada por mim própria e pelo meu próprio caos”. E conclui com uma imagem muito bonita: “Da carga que a palavra tem construímos um livro, como um novelo cheio de pontas soltas que se vai transformando numa peça de malha”.

As últimas palavras são abertamente dirigidas ao leitor. Mário de Carvalho defende que “fazem falta leitores que construam o livro consigo, que sejam parceiros do escritor”, reforçando que “sem o leitor o livro não existe porque o leitor também faz o livro”. Mas faz notar que “uma coisa é o leitor e outra é o público, o que compra o livro e que traz popularidade ao escritor, mas isso é baixar o nível. O jogo é com o leitor e não com o público, não com aqueles que aligeiram a leitura.” Ana Margarida de Carvalho corrobora a ideia, fazendo notar que também há aqueles escritores que aligeiram a escrita: “Isso é tratar o leitor como um consumidor. Isso é tratar mal o leitor, é apequená-lo e só denota arrogância da parte de quem o faz”, conclui.

Sem comentários:

Enviar um comentário