LIVRO: “Viagem ao Sonho Americano”,
de Isabel Lucas
Edição | Clara Capitão
Ed. Companhia das Letras, Junho de 2017
Há um motorista de autocarro português no trajecto entre Providence e
New Bedford e uma enfermeira de New Jersey chamada Ana, neta de
dominicanos. Há um cantor islâmico chamado Salaad e uma mulher no metro que grita, metade em espanhol
metade em inglês, que na cama dela só se deita quem ela quiser. Há
um Marco Tulio que se apresenta como brasileiro e serve há dois anos
o exército norte-americano numa base no Alasca. Há um cão que dá
pelo nome de Emmett Kelly. Há um céu às cores e na montanha, ao
longe, a palavra Hollywood. Há duas mulheres numa banca de peixe que
discutem política e há crianças alimentando mendigos, como quem
alimenta pombos, junto à estação de comboios de Washington D.C..
Há Neil Young e o massacre de Kent. Há Hillary e Trump e Cruz e
Sanders. Há uma mulher que atravessa a rua de trotineta e tailleur. Há essa pergunta, mil vezes repetida: “How do you do your
laundry?” E há, naturalmente, o sonho americano!
“Viagem ao Sonho Americano”, o
livro, começa em finais de Fevereiro de 2016, com Isabel Lucas a
encetar um périplo pelos Estados Unidos da América. Ao longo de um
ano e de 97 mil quilómetros percorridos, vai tomando o pulso a uma
Nação que deixa para trás Obama e o seu legado e tem agora em
Donald Trump o novo inquilino da Casa Branca. Levado na viagem e no
sonho, o leitor vai tomando, também ele, o pulso a uma América
que, afinal, parece conhecer de cor, de tal forma lhe soam familiares
os nomes, os lugares, até as situações, por mais bizarras que
possam ser. É, afinal, o “sonho” inculcado nos próprios sonhos,
de tanto o ver retratado em filmes como “E Tudo o Vento Levou”,
“Peço a Palavra”, “Do Céu Caiu uma Estrela”, “À Beira do
Abismo”, “O Mundo a Seus Pés” ou, mais recentemente, “Era
Uma Vez na América”, “Fargo” ou “Pulp Fiction”.
Isabel Lucas podia ter feito do cinema
o ponto de partida para esta viagem. Ou da música, da arte, dos
ideais de liberdade, até. Optou, no entanto, pela literatura, porque
é lá que está tudo. “Daí esta viagem ser a partir de livros que
levam a outros livros, porque não existem bons livros nem bons
homens sem contágio”, diz ela. E fez bem, digo eu, apesar de me
debater agora entre a vontade de reler Herman Melville, Virginia
Woolf, F. Scott Fitzgerald ou John Steinbeck e a intenção de
descobrir Donald Ray Pollock, Cormac McCarthy, Toni Morrison ou
Edwige Danticat, entre vários outros. Do livro fica tanta coisa... Fica, desde logo, não uma
América, nem duas, nem três, mas tantas quantos são os Americanos. Fica uma América dividida, tomada pela estranheza, marcada pela violência. Uma América vasta, das grandes extensões geladas do Alasca ao Oeste selvagem ou ao skyline de Manhattan. Fica uma América que se questiona, se desconstrói e se reinventa no
sonho e que, através dele, pula e avança. E fica esse som que obriga a fechar os olhos e a escutar com atenção. Um som que vai
enfraquecendo mas teima em não se apagar. Sim, um som. Talvez o de um
comboio a passar ao longe, à noite.
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