LIVRO: “O Meças”,
de J. Rentes de Carvalho
Ed. Quetzal Editores, Maio de 2016
Após uma primeira incursão no
universo literário de José Rentes de Carvalho – com “Montedor”,
o seu romance de estreia (1968) -, de novo essa sensação de
mal estar, quase repugnância, perante a figura central dum livro
seu, desta vez António Roque, o “Meças” do título. Com o
Freitas, de “Montedor”, partilha esta personagem doentia os
mesmos referentes geográficos e sociais. Num caso, como no outro,
estamos perante alguém à margem da sociedade, voltado sobre si
mesmo, com uma história de vida miserável, sem infância, sem essa
capacidade de aprender com as experiências pessoais, faltando-lhe a
introspecção de si mesmo e do efeito do seu comportamento nos
outros, sem remorsos nem vergonha, sem objectivos de vida realistas.
Ambos se arrastam num presente que é uma verdadeira morte lenta. Mas
enquanto o Freitas é um pobre coitado, “sem cara para levar um
estalo”, o Meças é um sádico e um depravado, um homem violento, um
psicopata da pior espécie, nutrindo um particular desprezo pela vida
e pelos valores que lhe são intrínsecos.
A acção decorre em Trás-os-Montes,
mas estamos aqui muito distantes do “reino maravilhoso” de Miguel
Torga. Este é um Trás-os-Montes “de gente heróica, lúbrica,
ladina, pateta, pacóvia, malandra, espertinha, orgulhosa, humilde,
amável, cheia de defeitos perigosos e de virtudes escondidas,
isolados do mundo, regressados do mundo, ricos remediados e pobres
sem lugar a não ser no cemitério”, conforme resumiu Francisco
José Viegas a propósito da obra do autor [ver AQUI].
Assim, ler “O Meças” é ir ao encontro dum microcosmos social
que permanece imutável desde tempos imemoriais, moldado pela dureza
dos elementos, subsistindo na estreita faixa das necessidades básicas
do nascer, comer, procriar e morrer, feito de gente primária, relacionando-se maquinalmente e que, nas
suas reacções instintivas, faz vir ao de cima o melhor e o pior que
há no ser humano.
Fernando Pessoa dizia que “o génio,
o crime e a loucura, provêm, por igual, de uma anormalidade;
representam, de diferentes maneiras, uma inadaptabilidade ao meio”
e este é um aspecto muito interessante que se evidencia em “O
Meças” e se vai cristalizando à medida que avançamos na sua
leitura. Determinada pela construção da Barragem do Sabor, a subida das águas vai apagando da superfície da terra a paisagem duma infância recalcada, obrigando o Meças a refugiar-se no mais alto dos montes, transportando consigo as sementes da violência e do ódio. A cada nova página a mesma atitude desajustada face ao
outro, à vida, ao mundo. Uma atitude com uma direção apenas, que
se deteriora de forma irrevogável. O mal que alastra é uma certeza.
Vira-se cada página em permanente sobressalto, na certeza de que o
pior ainda está para vir. Cada passo, cada gesto, cada palavra
proferida, traz consigo apreensão e medo. Fiel a uma escrita rasteira, sem facilidades nem concessões ao bom gosto, Rentes de Carvalho tem esse dom de dar a ver para lá do óbvio, recriando universos ficcionais que vão de braço dado com a realidade. A mão que, delicadamente, pousa sobre o ombro é a mesma capaz de derrubar, com um murro, o homem mais possante. Para o Meças não há remissão.
Só a morte o apaziguará.
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