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sábado, 7 de abril de 2018

LIVRO: "O Meças"



LIVRO: “O Meças”,
de J. Rentes de Carvalho
Ed. Quetzal Editores, Maio de 2016


Após uma primeira incursão no universo literário de José Rentes de Carvalho – com “Montedor”, o seu romance de estreia (1968) -, de novo essa sensação de mal estar, quase repugnância, perante a figura central dum livro seu, desta vez António Roque, o “Meças” do título. Com o Freitas, de “Montedor”, partilha esta personagem doentia os mesmos referentes geográficos e sociais. Num caso, como no outro, estamos perante alguém à margem da sociedade, voltado sobre si mesmo, com uma história de vida miserável, sem infância, sem essa capacidade de aprender com as experiências pessoais, faltando-lhe a introspecção de si mesmo e do efeito do seu comportamento nos outros, sem remorsos nem vergonha, sem objectivos de vida realistas. Ambos se arrastam num presente que é uma verdadeira morte lenta. Mas enquanto o Freitas é um pobre coitado, “sem cara para levar um estalo”, o Meças é um sádico e um depravado, um homem violento, um psicopata da pior espécie, nutrindo um particular desprezo pela vida e pelos valores que lhe são intrínsecos.

A acção decorre em Trás-os-Montes, mas estamos aqui muito distantes do “reino maravilhoso” de Miguel Torga. Este é um Trás-os-Montes “de gente heróica, lúbrica, ladina, pateta, pacóvia, malandra, espertinha, orgulhosa, humilde, amável, cheia de defeitos perigosos e de virtudes escondidas, isolados do mundo, regressados do mundo, ricos remediados e pobres sem lugar a não ser no cemitério”, conforme resumiu Francisco José Viegas a propósito da obra do autor [ver AQUI]. Assim, ler “O Meças” é ir ao encontro dum microcosmos social que permanece imutável desde tempos imemoriais, moldado pela dureza dos elementos, subsistindo na estreita faixa das necessidades básicas do nascer, comer, procriar e morrer, feito de gente primária, relacionando-se maquinalmente e que, nas suas reacções instintivas, faz vir ao de cima o melhor e o pior que há no ser humano.

Fernando Pessoa dizia que “o génio, o crime e a loucura, provêm, por igual, de uma anormalidade; representam, de diferentes maneiras, uma inadaptabilidade ao meio” e este é um aspecto muito interessante que se evidencia em “O Meças” e se vai cristalizando à medida que avançamos na sua leitura. Determinada pela construção da Barragem do Sabor, a subida das águas vai apagando da superfície da terra a paisagem duma infância recalcada, obrigando o Meças a refugiar-se no mais alto dos montes, transportando consigo as sementes da violência e do ódio. A cada nova página a mesma atitude desajustada face ao outro, à vida, ao mundo. Uma atitude com uma direção apenas, que se deteriora de forma irrevogável. O mal que alastra é uma certeza. Vira-se cada página em permanente sobressalto, na certeza de que o pior ainda está para vir. Cada passo, cada gesto, cada palavra proferida, traz consigo apreensão e medo. Fiel a uma escrita rasteira, sem facilidades nem concessões ao bom gosto, Rentes de Carvalho tem esse dom de dar a ver para lá do óbvio, recriando universos ficcionais que vão de braço dado com a realidade.  A mão que, delicadamente, pousa sobre o ombro é a mesma capaz de derrubar, com um murro, o homem mais possante. Para o Meças não há remissão. Só a morte o apaziguará.

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