LIVRO: “Gente Séria”,
de Hugo Mezena
Ed. Planeta Manuscrito, Fevereiro de
2018
Talvez deva começar por referir que a leitura
de “Gente Séria” constitui uma agradável surpresa, não apenas pela
desenvoltura demonstrada por Hugo Mezena na recriação de
personagens e ambientes mas sobretudo pela forma subtil como consegue
brincar com coisas sérias. É isso que se intui logo no primeiro
capítulo – com o sugestivo título de “O Sovaco” - e se
confirma à medida que a leitura avança, ora suscitando saborosas gargalhadas, ora obrigando a engolir em seco.
Nesta sua primeira obra, o autor serve-se do olhar dum rapazinho de dez anos para traçar o retrato
social duma comunidade rural à beira da viragem do milénio e, por extensão, deste país que temos e somos. Um
retrato que tem o seu início em 1987 e que, partindo do núcleo
familiar mais restrito – onde pontuam uma catrefada de tios e um
avô com rotinas no mínimo estranhas -, se estende ao padre e à
catequista, ao presidente da Junta e ao tractorista, à professora e
ao “simplório” do lugar. E que nos mostra do que a natureza humana
é capaz numa pequena aldeia grávida de hipocrisia, inveja, ciúmes,
transgressões, rivalidades, calúnias, traições e boas e más
acções. Aliás, uma das leituras possíveis de “Gente Séria”
consistirá, porventura, em pensar, à luz destes retratos, um País que é um verdadeiro paradoxo, no qual as assimetrias se agravam a cada dia que passa, tão próximo de tudo mas sempre tão afastado, um país “simplex” feito de gente simples, mas acima de tudo de
gente séria (com aspas ou sem elas, como se queira).
Da leitura de “Gente Séria” ninguém sai incólume. A acção tem data mas não é datada. É impossível ao
leitor não se rever numa parte substancial do que ali é narrado, se
não como elemento sugestivo das suas próprias vivências, pelo
menos das de muitos que lhe são próximos. Benomilde pode não ter
este nome no mapa, mas aquela aldeia existe na realidade e não é,
garantidamente, uma caricatura. Com uma escrita fácil e apelativa, “Gente Séria”
está recheado de momentos deliciosos, permitindo-me destacar esse
“registo de pecados” que, com os anos e o entendimento, se verá
transformado em “registo de pensamentos”. Já na parte final do
livro, Hugo Mezena brinda-nos com um Interlúdio que é, ao mesmo
tempo, uma marca distintiva do seu génio enquanto escritor. O olhar
acutilante atinge aí o seu expoente máximo, num registo avassalador
que subjuga o leitor, obrigando-o a olhar para o interior de si mesmo e a pensar o mundo e os homens tais como eles são.
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