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sábado, 25 de janeiro de 2025

TERTÚLIA LITERÁRIA: "Conversas às 5" | Marta Pais Oliveira



TERTÚLIAS LITERÁRIAS: “Conversas às 5”,
com Marta Pais Oliveira
Moderação | Joaquim Margarido Macedo
Centro de Reabilitação do Norte
23 Jan 2025 | qui | 17:00


Neste início de 2025, estão de regresso ao Centro de Reabilitação do Norte as “Conversas às 5”, iniciativa dirigida primordialmente aos utentes da instituição e que tem como grande objectivo a promoção do livro e a criação de hábitos de leitura. Convidada desta décima oitava edição, Marta Pais Oliveira trouxe consigo um rico e variado mundo de histórias e memórias, fundado naquilo em que acredita, “no poder e na liberdade da palavra”. O seu trabalho de escrita inclui ficção, poesia e textos para cena. Publicou em 2021 o primeiro romance, “Escavadoras”, vencedor do Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís, ao qual se seguiram os contos “O homem na Rotunda”, “Quando Virmos o Mar” e “Medula”, Prémio Nortear - Galiza / Norte de Portugal. É autora dos libretos “Maria Magola”, "Madrugada: As razões de um movimento” e do teatro musical “O Guarda-Rios Mágico”. “Tenho os Olhos a Florir” marca a entrada na literatura infanto-juvenil. “Faina” é o seu segundo romance. Mas esta foi uma sessão muito especial não apenas pela sensibilidade, delicadeza e generosidade da interlocutora, mas também pelo facto de, pela primeira vez, ter decorrido naquela que será em breve uma realidade chamada “Ponto do Livro”, espaço natural para a realização de algumas das actividades culturais que se projectam para o Centro de Reabilitação do Norte e que a partir do próximo dia 14 de fevereiro irá albergar a nova Biblioteca. Uma pré-inauguração, portanto, que não poderia ter sido mais feliz.

Foi justamente neste espaço luminoso, com o sol a adormecer e o mar a perceber-se ao longe, que uma interessante e interessada plateia, constituída na sua grande maioria por utentes internados no Centro, acolheu Marta Pais Oliveira para ouvi-la falar de si, do gosto pela leitura e de como, através dos livros, encontramos formas de expandir os nossos mundos. “A escrita tem essa particularidade de partir da leitura e quase que dela transborda”, referiu a escritora, cujo trabalho está ligado à comunicação, mas sobre o qual procura, cada vez mais, abrir espaço para os livros e fazer disso parte da sua vida, por ser aquilo que a move e apaixona. A escrita não foi um fenómeno precoce, lembra a convidada, surgindo na entrada para a idade adulta, no início do seu trabalho na área da comunicação empresarial. Foi nessa altura que sentiu a necessidade de escrever diariamente um pequenino conto, à noite, para combater a rotina de um trabalho ligado a metas e a números que lhe atrofiava a imaginação. Lembra, a propósito, que “eram pequeninos contos que escrevia quase para salvar o dia” e que muitos desses contos tinham traços surrealizantes. Não eram necessariamente contos do quotidiano, antes que a levavam para sítios fantásticos, “onde não há lei da gravidade e podia pintar o céu de outra cor”.

A um conto seguiu-se outro conto, e outro ainda. O “comboio” foi ganhando velocidade e a pulsão para abraçar algo mais substancial cresceu também. É deste labor que nasce “Escavadoras”, mas também da inquietação da escritora sobre a incomunicabilidade, à qual se alia a solidão. É um livro que fala de identidade e memória, de resistência e liberdade. De estarmos todos ligados, lembrando Marta Pais Oliveira que “a nossa pele não acaba na nossa pele, fazemos todos parte de um mesmo tecido e onde uma coisa se rompe outra vai-se romper mais à frente, onde uma coisa se regenera, mais à frente outra coisa se pode regenerar.” Também “Faina”, o seu segundo romance, se sustenta nos mesmos conceitos, ao encontro de uma comunidade piscatória que resiste aos avanços do tempo e do progresso, alicerçada em princípios e valores apenas seus. Falando da sua experiência de leitor, o moderador confessa que este foi “um livro mil vezes posto de parte, mil vezes recuperado”, o que mereceu da escritora a observação de que isso a deixa muito feliz: “Gosto muito que o texto tenha momentos em que repele e outros em que atrai, tal como a vida, tal como o mar no seu vai e vem, que afasta e aproxima.” A conversa à volta de “Faina” serviu para falar de muitas coisa, do redeiro e do Zé Gordo, do cancioneiro popular e da arte xávega, da dinâmica de uma sociedade matriarcal, de“quando o mar chama” e do quão importante é saber respeitar os ritmos da natureza. “Ritmos de cura”, chama-lhes a escritora, estabelecendo um contraponto com o ritmo frenético e doentio em que vivemos nos dias de hoje.

No fluir da conversa falou-se ainda de mistério e magia, da percepção de que “a magia da escrita e da leitura está em podermos abandonar a nossa pele e sermos outra coisa, sermos montanha, sermos água, sairmos dos nossos limites, das nossas barreiras físicas e psicológicas, conseguirmos uma quase dissolução”. Falou-se também do poder de criar que há em cada leitor, fazendo o escritor apenas metade do trabalho. É o imaginário do leitor, a sua capacidade de efabular em cima do que está ler, que faz do livro aquilo que pode representar (e que é sempre diferente de leitor para leitor). O livro é, assim, um acto de criação, de imaginação e de resistência”. Para fim de conversa falou-se do gesto da escrita, da sua imprevisibilidade e dos caminhos que pode levar, tomando como certa a felicidade de estarmos vivos, de ainda contarmos e fazermos parte de tudo isto, devermos acreditar que podemos regenerar aquilo que parece perdido e confiar no valor daquilo que fazemos. Mas o livro deve ser também um lugar de estranheza, de atropelo das nossas vidas e das nossas vozes, um lugar que possa trazer algum desconforto. Um lugar onde nos perdemos para que nos possamos encontrar, onde nos sentimos cativos para podermos dar todo o valor à nossa liberdade.

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

LIVRO: "Faina"



LIVRO: “Faina”,
de Marta Pais Oliveira
Ed. Gradiva Publicações, Julho de 2024


“(...) fica a olhar o livro aberto em dois, e vem de lá de dentro um rapaz, quer saber se quer ajuda, ela diz que está só a ver, cruzam os olhares por um nico de segundo, e nesse lampejo ele diz-lhe que é bonita, sem olhar a forma como está vestida, os pés quase descalços, parecia olhar apenas o rosto, e no rosto saltava entre os olhos e a boca, és bonita, e ela continua a olhar as páginas cheias de mistérios, maiores do que os que o mar carrega, e isso é tremendo, e pergunta-lhe se sabe ler aquilo, ele diz que sim, és bonito, e nem o rosto inteiro lhe quis ver.”

“Todos diferentes, todos iguais”. Habituámo-nos a associar o “slogan” aos movimentos para a inclusão social de pessoas com deficiência e a mantê-lo presente em todos os momentos do quotidiano. Foi nele que pensei ao mergulhar no mais recente romance de Marta Pais Oliveira, atribuindo-lhe o sentido lato de “comunidade”. Na leitura de “Faina”, como o próprio título indicia, a comunidade é piscatória. Entre o mar e a duna, é nos areais a sul de Espinho que a vamos encontrar com os seus palheiros e barracões no cimo do vasto areal, “às quatro da manhã o primeiro lanço, lá para as oito o alar para terra”, redes estendidas sobre a areia que homens e mulheres demoradamente remendam, o mar que prende o olhar, mar de sonhos e de ilusões, mar de angústias e de muita dor. São gente diferente entre si, nas marcas que o corpo revela e nas ambições que lhes tomam a cabeça, mas igual quando chega a hora de juntar esforços e tirar do mar o sustento ou de chorar as suas investidas traiçoeiras. Gente diferente na forma de encarar os outros, mas igual no sentimento que botam ao mar, um fio atado entre todos como remendo de rede. “Gente do bairro é sangue do nosso sangue”.

É Espinho sim, embora o tempo seja outro. A urbe cresce com a chegada do “chemin de fer”, o advento do Casino, a Real Fábrica das Conservas. Era aqui que, nas épocas de maior movimento, trabalhavam quatrocentas pessoas, sobretudo raparigas menores e sem qualquer escolaridade. Vinham do bairro de pescadores e o magro salário ajudava nas contas da casa. “Ninguém quer viver uma vida sem possibilidades”. Sem uma cronologia precisa, percebemos que o tempo se desloca no livro, mostrando o quão ténues podem ser as diferenças entre os dias de ontem e os de hoje. O bairro é o mesmo, como são as mesmas as pessoas de sempre: O Ouve Lá, O Assobio, O do Cachecol, A do Guindaste, O Oh Diacho, A do Moreno, A do Mar. De ontem e de hoje é a mão que espeta melhor um travessão no puxo do cabelo, como são os barcos rivais à recaxia, a euforia de um grande lanço, os homens à conversa, as mulheres metidas na roupa suja a esfregar escamas de peixe e nódoas de vinho, o pontão que não trava o ímpeto das ondas, o andor pelas ruas do bairro até chegar à praia para a bênção do mar. Só os bois a lavrar o mar não existem mais.

Quem leu “Escavadoras”, o primeiro romance de Marta Pais Oliveira, sabe que a autora não escreve para facilitar a vida aos leitores. É de mares revoltos, de espuma, vento e rugidos medonhos que “Faina” se faz. De agueiros e marés vivas, de ondas que se entrechocam e monstros marinhos que abraçam os incautos e os arrastam consigo para as profundezas. Nele, o anoitecer de uns é mais vivo que a aurora de outros e a vida pior do que uma pedra espancada pelo mar. “Território sem lugares escondidos, onde mentira alguma sobrevive”, assim é “Faina”, um livro cem vezes posto de parte com a certeza de não se voltar a ele, cem vezes recolhido, sacudido da areia e da espuma do mar, estreitado com força junto ao peito como um filho rebelde que se abraça demoradamente num pedido de perdão. Entre a magia do realismo e o realismo mágico, “Faina” encerra desafios constantes, qual “Ulisses” gerador dos mais díspares sentimentos. Prepare-se o leitor para o despertar de um novo parágrafo, de uma nova linha. Para um mar alto de emoções. Pode ser medonho seguir na crista da onda, mas chegará a terra são e salvo. Porque “Faina” é também isso: Cura e salvação.