Pé ante pé, muito ao de leve, como quem se compraz em saborear a jornada e não tem pressa de chegar ao fim, o Shortcutz Ovar atingiu, na noite da passada quinta-feira, a bonita soma de noventa e nove sessões. Uma marca relevante, a prova provada do empenho em dar a ver cinema português de qualidade, em fazer da inovação peça-chave de uma programação cuidada e atenta ao detalhe e que persiste em conquistar espectadores, encontrando neles os guardiões de uma identidade própria e particularmente bem-sucedida. Em vésperas de Halloween, a programação voltou-se, uma vez mais, para o cinema de género ligado ao fantástico e ao terror, brindando o público com três curtas-metragens que tiveram na morte - gentil e reconfortante para uns, um mal inimaginável para outros - um denominador comum. Presentes pela primeira vez no Shortcutz Ovar, um deles de forma virtual, os três realizadores mantiveram animadas conversas com o público, satisfazendo a sua curiosidade, revelando os pormenores que se escondem, por vezes, nas dobras de uma sequência aparentemente simples e fazendo da sessão mais um momento privilegiado de comunhão de interesses e partilha de conhecimentos.
Pela quinta vez na presente temporada, o cinema de imagem animada voltou a marcar presença no Shortcutz Ovar graças ao filme “A Caçada”, de Diogo Costa. Perdidos na floresta, três soldados vêem-se obrigados a gerir os traumas do passado, ao mesmo tempo que procuram escapar às forças malignas que os perseguem. Embora possa não ser claro, a narrativa alimenta-se de uma forte componente autoficcional (o rosto de uma das personagens indica estarmos perante o próprio realizador) e encontra inspiração nos ambientes tensos e densos dos videojogos. Este é um universo muito querido a Diogo Costa - ele próprio artista conceptual e ilustrador que vem estendendo as suas colaborações à produtora Lucasfilm e à série Star Wars –, entendido como perfeito para abordar a natureza dos conflitos e a forma como lidamos com eles. Fortemente estilizado, o filme é revelador de um realizador criativo e perfeccionista, que aposta na componente visual para impactar o espectador, ao mesmo tempo que rende homenagem a um conjunto de filmes de culto onde poderemos ver “Carrie”, “Full Metal Jacket”, “A Noite dos Mortos Vivos” ou a saga “Alien”. Entre a Guerra do Vietname e a ameaça de uma III Guerra Mundial, Diogo Costa mostra como o cinema pode ser uma arma poderosa no confronto com os nossos fantasmas.
Coube a João Antunes e ao filme “Os Terríveis” assumirem o segundo momento da sessão, trazendo consigo uma história de vingança no seio de uma família. Franco e Agostinho são dois irmãos ligados pela violência e que guardam na memória o suicídio da sua mãe. Ao fim de décadas na sombra, o confronto com o pai, a fonte dos seus pesadelos, irá pôr em causa a natureza das suas convicções. “Filme de escola” com a marca da Lusófona Filmes, “Os Terríveis” vai beber ao “western” o seu formalismo, expandindo o género por terrenos do drama familiar, do thriller e do terror. Ao invés de o fragilizar, a desconstrução do género é sabiamente explorada por João Antunes para se aproximar do espectador, envolvendo-o na trama do filme e levando-o a, também, ele, a fazer escolhas. O cunho operático, nas sequências de maior tensão, é outro dos pontos fortes do filme, tirando partido da música de Verdi e Delibés, sobretudo, e trazendo à memória cenas icónicas de algum do melhor cinema que realizadores como Francis Ford Coppola, Brian De Palma, Peter Greenaway ou Quentin Tarantino nos legaram. Uma última palavra para a excelente fotografia de João “Pepe” Pereira e para a superior interpretação de David Medeiros e Eduardo Frazão no papel dos dois irmãos.
Chico Noras colocou um ponto final no serão com “O Procedimento”, uma comédia negra que faz girar a narrativa em torno da morte, mas neste caso medicamente assistida, vulgo “eutanásia”. A acção decorre num futuro que se pretende (?) próximo, no qual o suicídio e a morte assistida são procedimentos moralmente aceites, introduzidos com naturalidade no nosso quotidiano. De forma bem humorada, o filme funciona como um mediador entre o pensamento e a emoção, ajudando-nos a reflectir sem dogmatismos. Ao transformar um tema sério em comédia, Chico Noras não está a banalizá-lo, antes a convidar-nos a abordá-lo com leveza crítica, desarmando preconceitos e pondo em evidência o absurdo da vida e da morte. Mais provocador do que moralista, o filme é de uma enorme riqueza nas camadas que o compõem, da problemática religiosa em momentos decisivos da nossa existência ao negócio que se abriga à sombra das clínicas de “ajuda” na aproximação ao momento derradeiro. No papel de Maria Eugénia, Paula Só é um espectáculo dentro do espectáculo e o uso da cor, ao evidenciar o kitsch que o nacional foleirismo encerra, é outro dos trunfos do filme. As sequências estão recheadas de momentos divertidos e, para animar a festa, não falta sequer a música de José Pinhal. Um belo filme, a merecer o voto do público como a melhor curta da noite.
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