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sábado, 15 de novembro de 2025

CINEMA: “Foi Só Um Acidente” | Jafar Panahi



CINEMA: “Foi Só Um Acidente” / “Yek tasadef sadeh”
Realização | Jafar Panahi
Argumento | Jafar Panahi
Fotografia | Amin Jafari
Montagem | Amir Etminan
Interpretação | Vahid Mobasseri, Mariam Afshari, Ebrahim Azizi, Hadis Pakbaten, Majid Panahi, Mohamad Ali Elyasmehr, Delmaz Najafi, Afssaneh Najmabadi, George Hashemzadeh, Liana Azizifay
Produção | Philippe Martin, Jafar Panahi
Irão, França, Luxemburgo, Estados Unidos | 2025 | Drama, Thriller, Crime | 103 Minutos | Maiores de 14 anos
Vida Ovar Castello Lopes
13 Nov 2025 | qui | 16:25


Sob a presidência da actriz Juliette Binoche, o júri do Festival de Cannes concedeu a Palma de Ouro ao novo filme do realizador iraniano Jafar Panahi, “Foi Só Um Acidente”. O prémio, ainda que merecido pela força estética e narrativa da obra, tem inevitavelmente uma dimensão política. Panahi, dissidente e ex-preso político, foi condenado em 2010 por “propaganda contra a República Islâmica” e proibido de filmar. Desde então, o cineasta tornou-se símbolo de resistência criativa, desafiando as autoridades iranianas com obras clandestinas, filmadas sem autorização oficial e em condições de quase total clandestinidade. Trinta anos após ter recebido a Caméra d’Or por “O Balão Branco”, Panahi fecha um ciclo de reconhecimento internacional, somando aos prémios maiores de Veneza, Locarno e Berlim, também a Palma de Ouro, uma façanha única que confirma o seu estatuto como um dos autores mais importantes e corajosos do cinema contemporâneo.

Com “Foi Só Um Acidente”, Jafar Panahi regressa a uma narrativa de cariz clássico, embora mantenha o olhar moral e político que o caracteriza. A história inicia-se numa estrada deserta, onde um homem de meia-idade viaja com a mulher e a filha quando o carro atropela um cão. Este acontecimento banal serve de gatilho para uma série de eventos que revelam uma teia de memórias e culpas do Irão contemporâneo. Quando o homem leva o carro a arranjar, o mecânico reconhece nele o som de uma perna artificial que lhe evoca um passado traumático: o de prisioneiro político torturado por alguém conhecido, precisamente, como o “Coxo” ou o “Perneta”. Convencido de estar perante o seu antigo algoz, o mecânico decide sequestrá-lo e levá-lo para o deserto, num impulso de vingança que se transforma rapidamente em dilema moral. Jafar Panahi transforma esse encontro num jogo de espelhos sobre culpa, justiça e identidade, no qual vítima e carrasco se confundem à sombra de um regime que a ambos deformou.

O filme, interpretado por actores não profissionais, oscila entre o drama moral, o thriller psicológico e a sátira política. Panahi combina o humor absurdo - evocando Beckett e o seu “À Espera de Godot”, com uma “pitada” de Hitchcock e dos Irmãos Marx - com uma tensão ética constante. O deserto torna-se palco de uma meditação sobre a violência e o perdão, no qual as personagens debatem os limites de justiça e vingança: “E se ele for inocente? E se formos nós agora os carrascos?” questionam-se os sequestradores. A incerteza moral é o verdadeiro motor de uma narrativa que recusa oferecer respostas fáceis. O desfecho, ambíguo e perturbador, confirma Panahi como mestre da sugestão e do não-dito, um cineasta que transforma cada filme num acto de resistência. “Foi Só Um Acidente” não é apenas uma obra de ficção, mas um manifesto silencioso sobre o poder do cinema de sobreviver à censura e de iluminar, mesmo em segredo, a escuridão de um país e de uma consciência colectiva.

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