Depois de “Reabilitação / Valadares”, de Agostinho Santos, o Centro de Reabilitação do Norte volta a abrir o seu espaço às artes plásticas, recebendo a exposição “Olhares Sem Tempo”, conjunto notável de pinturas da autoria de Maria do Carmo Vieira. São quinze retratos de crianças em cujos rostos, pequenos e calados, se inscrevem marcas fundas de um mundo desigual. Crianças que carregam, no silêncio dos olhos, a herança amarga da exclusão: vítimas da guerra e da fome, das desigualdades sociais, da discriminação racial, da pobreza que se transmite de geração em geração como uma sentença. Cada rosto pintado é uma denúncia — não de uma tragédia longínqua, mas de uma realidade que persiste ao nosso lado, mesmo quando viramos o olhar. São rostos que nos perturbam porque revelam aquilo que preferíamos não ver: a infância roubada, os sonhos sonegados, o futuro comprometido antes mesmo de começar.
Busquemos cada pintura naquilo que tem para nos oferecer. Vistas de longe, nas suas formas e cores de uma grande autenticidade, representam um ideal de beleza e harmonia. Mas a série pede que nos aproximemos de cada retrato, queremos ver de perto a forma como a tinta se espalha sobre o papel e resulta em trabalhos tão apelativos. Muito depressa, porém, a curiosidade pela técnica cede lugar àquilo que cada pintura representa, testemunhos de afectos interrompidos que são, de vidas silenciadas, de esperanças adiadas. De tão próximos que agora estamos, os olhares destas crianças transferem para nós o peso do mundo. Olham-nos com olhos grandes e fundos, olhos que procuram respostas, olhos que exigem escuta. São olhares que atravessam o tempo e o espaço, que nos obrigam a sair da nossa zona de conforto e a reconhecer a urgência de agir.
A indiferença — esse gesto cruel de quem se habitua à dor dos outros — é, talvez, o maior dos males. Um mal terrível que a pintura de Maria do Carmo Vieira teima em combater. Porque atrás de cada rosto há uma história que não foi contada - no frio das fronteiras, na fome que não passa, na violência que se repete. Há uma infância que não chegou a acontecer, uma humanidade que nos foi arrancada a todos, e a isso não podemos ficar indiferentes. “Olhares Sem Tempo” não oferece respostas fáceis. Em vez disso, convida à reflexão — e, quem sabe, à responsabilidade. Porque nenhuma criança deveria crescer sob o peso do abandono ou do medo. Porque a arte, quando se torna espelho da injustiça e dá voz aos que a não têm, pode ser também instrumento de consciência. Ao dar rosto às vítimas invisíveis dos grandes desequilíbrios do mundo, estas obras devolvem-lhes a dignidade que lhes foi negada. E, ao fazê-lo, devolvem-nos também a capacidade de sentir, de cuidar, de transformar. Que estes “Olhares Sem Tempo” não passem por nós em vão. Que nos comovam. Que nos movam.
Sem comentários:
Enviar um comentário