CINEMA: “Com a Alma na Mão, Caminha” / “Put Your Soul on Your Hand and Walk”
Realização | Sepideh Farsi
Argumento | Sepideh Farsi
Fotografia | Sepideh Farsi
Montagem | Sepideh Farsi, Farahnaz Sharifi
Interpretação | Sepideh Farsi, Fatma Hassona
Produção | Sepideh Farsi, Javad Djavahery
França, Territórios Palestinianos Ocupados, Irão | 2025 | Documentário, Drama, Guerra | 113 Minutos | Maiores de 12 Anos
Vida Ovar – Castello Lopes
19 Set 2025 | sex | 14:10
Quão atual pode ser um documentário? “Com a Alma na Mão, Caminha”, selecionado em Abril de 2024 para o Festival de Cannes, é disto o mais extraordinário exemplo, tornando-se tragicamente profético logo no dia seguinte à sua escolha: a protagonista, a fotógrafa palestiniana Fatma Hassona, foi morta num bombardeamento israelita, juntamente com seis membros da sua família, no noroeste de Gaza. Pouco antes da estreia nos cinemas, as últimas fotografias da também fotógrafa Mariam Abu Dagga circularam nos meios de comunicação — ela foi assassinada enquanto documentava mais um ataque em Khan Younis. Desde o início da guerra, a 07 de outubro de 2023, mais de duzentos jornalistas perderam a vida, entre eles três dezenas de mulheres, o maior número alguma vez registado num conflito armado. É um dado que não se fixa em estatísticas. É um grito. No passado dia 01 de setembro, centenas de órgãos de comunicação em todo o mundo silenciaram-se simbolicamente — capas negras, páginas em branco — num protesto uníssono: sem jornalistas, Gaza desaparece. E é justamente contra esse apagamento que o filme se ergue, não como obra apenas, mas como documento essencial de uma tragédia em curso. Um filme que, ao invés de terminar, continua a ser escrito no sangue dos que ousam contar.
Sepideh Farsi, realizadora iraniana, parte de um impulso quase ingénuo: queria filmar o quotidiano em Gaza, entre ruínas e rotinas, mostrando que a vida, mesmo sob cerco, persiste. Impedida de entrar no território pelas forças expansionistas e genocídas de Israel, encontra outra forma de atravessar muros: os olhos e as palavras de Fatma Hassona, com quem estabelece uma ligação íntima por videochamadas entrecortadas e silenciadas de forma inesperada. Farsi fala a partir de Itália, Marrocos, Canadá — lugares onde o tempo corre noutro ritmo —, enquanto Fatma, entre sirenes, drones, os F16 que atroam os ares com a potência dos seus motores ou o impacto das explosões, diz sempre: “estou em casa”. Mesmo quando obrigada a mudar de lugar, mesmo quando tudo à volta desaba, Gaza permanece nela. O contraste entre a mobilidade da realizadora e o enraizamento forçado da fotógrafa nunca soa a desigualdade, mas a duas formas de resistência que se encontram, se tornam cúmplices e solidárias. E é, paradoxalmente, Fatma quem consola Sepideh, quando esta se sente impotente: “É suficiente que me escutes”, diz-lhe. Nessa escuta, nasce algo mais forte do que o mero registo. Nasce uma amizade atravessada pelo horror, mas iluminada por uma humanidade invencível.
As chamadas interrompidas por bombas misturam-se com imagens das aberturas dos telejornais dando conta da escalada do conflito e com as fotografias captadas por Fatma, retratos de um quotidiano insuportável: rostos que não gritam, mas olham com uma calma que fere, como se a dor já não precisasse de ser expressa. Famílias entre escombros, crianças entre ferros retorcidos, uma criança que lava o sangue espalhado no pátio, ruínas que ainda guardam restos de dignidade. Há uma beleza quase insuportável nestas imagens, tiradas entre explosões, como se cada disparo fosse um desafio ao silêncio imposto. Fatma diz: “Tirar fotos em Gaza é como pôr a alma nas mãos e caminhar pelas ruas”. E essa frase é o coração do filme, um gesto de entrega absoluta, de coragem serena. Mas talvez o mais comovente seja o seu sorriso, uma luz suave e persistente que atravessa a câmara. Um sorriso que não nega o horror, mas o enfrenta. Quando lhe perguntam de onde vem tanta força, responde: “Não importa se nos matam, nós vamos sorrir e viver”. E é nesse sorriso — que resiste à morte, à perda, ao esquecimento — que o documentário encontra o seu verdadeiro sentido.
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