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segunda-feira, 23 de junho de 2025

LIVRO: "A Ressurreição de Maria" | Cláudia Andrade



LIVRO: “A Ressurreição de Maria”,
de Cláudia Andrade
Ed. Elsinore, Março de 2025


“Caifás enxotou dois escravos que o seguiam e cujos passos, por suaves que fossem, o importunavam, e prosseguiu a raciocinar: que ande um tipo a fazer os cegos ver, a endireitar marrecos e a calafetar chagas é uma coisa, mas levantar alguém dos mortos é outra completamente diferente. Quereria Caifás ver de novo erguidos aqueles que matou? Não, por Moloque, pois se os havia mandado matar por uma boa razão ou outra. Quereria ver o sogro, Anás, regressar do outro lado? Não, por Nabu, uma vez que hoje se sentava na sua cadeira e o substituía na fraternidade com a administração romana. Os seus pais? Não, por Quemós, não, que em boa hora se tinham ido. Trazer de volta alguém à vida era, sob qualquer ponto de vista, um acto extraordinariamente inoportuno.”

Valerá a pena olharmos em retrospectiva as obras de Cláudia Andrade para percebermos o ponto a que chegamos neste seu novo livro de contos. Em “Quartos de Final e outras Histórias”, a autora mostrava-nos o seu olhar atento e perspicaz sobre o espaço em volta e um apurado sentido crítico face àqueles que o habitam. Com “Caronte à Espera” bebemos-lhe o gosto pelos jogos de palavras e o tom poético da sua escrita. “Um Pouco de Cinza e Glória” surpreendeu-nos pela argúcia e ironia no cruzamento de histórias de amor e vingança, dor e luxúria, mostrando o que de bom e menos bom se abriga no ser humano. E com “O Santo Ilusionista” ofereceu-nos um retrato mordaz da nossa própria humanidade. Mas nunca como em “A Ressurreição de Maria” foi Cláudia Andrade capaz de uma escrita tão apurada, elevando a uma ordem de grandeza superior as qualidades que lhe reconhecíamos dos seus escritos anteriores. Ao projectar na perfeição as suas personagens, é de cada um de nós que a autora volta a falar, seres (ainda mais) anómalos, desajustados e cheios de contradições que somos.

Conjunto de nove contos breves, reunidos sob o título de um deles, “A Ressurreição de Maria” estende o olhar sobre as peripécias do quotidiano, fazendo desfilar ante o leitor um conjunto de personagens imperfeitas, arquétipos da vulgaridade humana, reféns de pulsões doentias, mas que possuem essa qualidade única de repelirem e atraírem em igual medida, pelo que de santo e de louco existe em cada uma delas. O conto que dá título ao livro, então, é um primor de escrita, merecedor de uma atenção muito particular pelo que revela das qualidades de escrita da autora e do seu universo criativo. Nele, o milagre da ressurreição de Lázaro, a rogo de Maria e Marta, as suas irmãs, é analisado na perspectiva de quem gozava tranquilamente as benesses do “eterno repouso” e se vê de regresso a um mundo do qual não guarda saudades. Mas também destas irmãs, de novo chamadas a cuidar de alguém com quem já não contavam, e de toda uma série de personagens que vêem no poder de Cristo em tornar os mortos à vida uma ameaça ao seu próprio poder, sejam eles políticos, negociantes ou toda a casta de curandeiros. Seria Saramago no seu melhor, se não fosse... Cláudia Andrade.

Um homem que profana um cadáver com a conivência de uma vizinha, as intrigas e pequenos ódios no seio de um grupo de excursionistas, um rapaz que se suicida após ser vítima de bullying, um psicopata que aterroriza a mulher e as filhas, um homem que estrangula a namorada e assume a responsabilidade pelo crime em directo para as câmaras de televisão, uma família que sofre na pele por aquilo que é considerado excesso de sorte em terra de gente desafortunada. Através das histórias improváveis que se desenrolam ao longo do livro, desenha Cláudia Andrade um retrato da condição humana, pintando-o com as cores vivas da liberdade, da beleza e da dignidade e misturando nele os tons sombrios da inveja e da mesquinhez, da violência e do crime. A profusão de imagens que se desenrolam a partir de cada uma das histórias vê-se enriquecida por uma escrita elegante, de um vocabulário riquíssimo e um refinado sentido de humor, implacável na forma como expõe ao ridículo as misérias do ser humano. Do melhor que li no que levamos de 2025, “A Ressurreição de Maria” devolve ao leitor o prazer de um bom livro, algo cada vez mais raro nos tempos que correm.

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