Páginas

sábado, 10 de maio de 2025

LIVRO: "Os Filhos de Monte Gordo" | José Carlos Barros



LIVRO: “Os Filhos de Monte Gordo”,
de José Carlos Barros
Colecção Retratos da Fundação
Ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos, Fevereiro de 2025 


“Terá sido por isso, por causa desse muro, dessa linha imaginária, que Ingrid Bergman não visitou o extremo poente nos quatro dias de Fevereiro de 1962 que passou em Monte Gordo, talvez ainda melancólica, nostálgica, depois da rodagem de Goodbye Again: porque o Sertão, quase encostado aos hotéis e às tabacarias que vendiam postais ilustrados, estava simultaneamente longe, como se as cabanas e as casas dessa periferia, desse espaço à margem, com paredes de junco ou de adobes de cal bem amassada e misturada às cascas partidas dos bivalves, ficassem afinal do outro lado do mundo.”

Da autoria de José Carlos Barros, “Os Filhos de Monte Gordo” é mais um “retrato” da Fundação Francisco Manuel dos Santos digno de nota. Atento ao detalhe, numa escrita elegante, o autor revisita um território do sotavento algarvio que conhece bem, destacando as assimetrias que se foram desenhando com o aparecimento dos primeiros “touristes” e mostrando que, por detrás do Monte Gordo do postal ilustrado, sempre houve um “sertão” escondido e à vista de todos. Está dado o mote para recuarmos a 1855, seguindo com o Dr. José Francisco Guimarães “por um caminho escabroso em rocinante lazarento”, em busca de uma praia frequentada por banhistas, numa altura em que os banhos de mar começavam a ser receitados pelos médicos. De então em diante veremos como melhoram as acessibilidades, entram em funcionamento as fábricas de conserva de atum (e mais tarde de sardinha, de biqueirão e cavala) e prospera o negócio de aluguer e venda de casas. A paisagem urbana começa a mudar. Não tardará a que surja o serviço de automóveis do Sr. Samuel Sequerra, comecem a aparecer os restaurantes, as primeiras pensões e hotéis e, não um, mas dois casinos. O progresso segue em marcha acelerada.

Retrato cru de um Algarve que permaneceu demasiado tempo entregue a si próprio, “Os Filhos de Monte Gordo” conta histórias de discriminação e resistência, sofrimento e coragem. Com uma precisão cirúrgica, o autor dá nota da influência perniciosa da Coroa e do Estado sobre um território à mercê do seu poder e interesses, fortemente condicionado na sua autonomia, vítima de uma situação geográfica periférica e da forte pressão exercida por uma Espanha tão próxima e tão mais forte. Recuando oito séculos no tempo, a uma altura em que Tavira era ainda reduto muçulmano, José Carlos Barros começa por nos falar dos figos algarvios e do seu “poder de parar uma guerra”. No final do século XV vemos como era incrível a riqueza deste mar, as pescarias de Monte Gordo a serem feitas essencialmente por castelhanos. As histórias prosseguirão com as barcas da Marquesa de Ayamonte e as proezas do corsário Jean Florin, o terramoto de 1755 e a trasladação do Santíssimo Sacramento da Ermida de Nossa Senhora das Dores de Monte Gordo para Vila Real de Santo António, às ordens do Marquês de Pombal, nos finais de Janeiro de 1775. Estas e muitas outras histórias marcam avanços e recuos na dinâmica económica e social da região e dão prova de uma extraordinária resiliência do povo da beira-mar.

Quando, em 1969, a repórter Vera Lagoa “vem à procura do glamour, das luzes das boîtes, da simplicidade chic das estrangeiras de blusas leves, de soutien, calcinhas e vestido de renda”, é-lhe impossível ficar indiferente àquele “sertão, terra de cuícos” ali ao pé. Nas várias crónicas para o Diário Popular e para a Rádio & Televisão, vai dando conta desse “abandono inexplicável”, dessa “nódoa negra e trágica do Algarve”, enquanto o turismo avança e é já um fenómeno irreversível. E hoje, em pleno século XXI, o que mudou? “Tudo mudou”, conta José Carlos Barros, com o fim do “sertão”, pelo menos tal como se conhecia, tão pitoresco quanto miserável com as suas “barracas de latas e lusalite, cabanas de estorno e pau de piteira”. São os próprios habitantes a lembrarem a realidade de outrora, num último capítulo extraordinariamente desenhado no qual o autor abre as páginas do livro às palavras dos filhos de Monte Gordo. São eles a Maria Júlia e a Assunção, a Ana e o José, a Manuela e o João. Lembram a taberna, a bebida e o vício do jogo, o trabalho nas fábricas, a violência dentro de portas, o remedeio no comer e no vestir. Um livro pequenino em tamanho, mas enorme nesta forma de evocar a identidade e consciência de um escasso número de pessoas que resistem e persistem no apego à sua terra, ao seu Monte Gordo.

Sem comentários:

Enviar um comentário